CULTURA
DOMINGO, 24 MAR 2002
Bretanha sem bombarda no Festival Intercéltico
do Porto
13ª EDIÇÃO, APÓS UM ANO DE INTERRUPÇÃO
A Bretanha, mas não muito dos Kornog, encetou da melhor forma a 13ª
edição do Festival Intercéltico do Porto, que hoje termina no Coliseu com os
irlandeses De Danann
Foi reatada a tradição. Após um ano de interregno, o festival
Intercéltico do Porto está de volta, no formato que tem sido habitual ao longo
das suas últimas doze edições: três noites de palco principal; outras tantas
madrugadas em recantos onde tem lugar o improviso e a boa música irrompe quando
menos se espera. A confirmação, além do palco grande do Coliseu do Porto, onde
os Kornog fizeram as honras da melhor música céltica, veio do bar do hotel Vila
Galé, com bretões e espanhóis a proporcionarem uma grande sessão de música...
irlandesa!
Após uma
primeira parte preenchida pelo grupo português Roldana Folk, os Kornog
apresentaram-se pela primeira vez num palco nacional. Um escocês, Jamie
McMenemy, residente há 25 anos na Bretanha, e três bretões genuínos, dos
irredutíveis, Christian Lemaître, Jean-Michel Veillon e Nicolas Quemener,
apresentaram um catálogo variado de música céltica, humor e algum virtuosismo.
Tocaram
todo o tempo sentados mas tal pose não obstou a que energia se fosse soltando,
como uma barragem a abrir brechas. O recital só não descambou em bailarico
(apesar de alguns ameaços, já na parte final...) provavelmente porque a
complexidade dos compassos não deixou. Mas se a música quase sempre andou num
novelo por vezes difícil de desembaraçar, não faltou o humor negro e
surrealismo na forma como Lemaître e McMeney (este em versão bilingue, em
francês e inglês) introduziam cada tema. Histórias de cabeças cortadas e de
crianças esquartejadas e servidas aos pais em deliciosas empadas, intercaladas
com explicações sobre como beber as chamadas "oreilles de bonhomme"
(aguardente típica da Bretanha, parece que bastante alimentícia, dado que os
músicos garantiram bebê-la todos os dias ao pequeno-almoço...) puseram toda a
gente bem disposta e recetiva, digamos assim, a uma música que fez bem em não
se deixar enredar na vontade, boa mas disléxica, das inevitáveis palminhas de
acompanhamento.
Nesse aspeto,
os dois solistas dos Kornog, Lemaître, no violino, e Veillon, na flauta, não
deram grandes chances. Complicaram o mais que puderam os "airs",
"jijs", "gavottes", "dans fisel",
"scottisches" e "strathspeys". Sem atropelos, a não ser na
desbunda do encore, onde no afã da rapidez, o guitarrista acabou por
ultrapassar sem fazer sinal os seus companheiros... Veillon, sobretudo ele,
mostrou ser um flautista completo, quer em termos técnicos quer na elegância do
estilo. Só foi pena não ter chegado a tocar bombarda, que está para a música
bretã como a gaita-de-foles está para a música galega, o saxofone tenor para o jazz
ou a guitarra elétrica para o rock.
Excelentes
no reportório instrumental - do "set" inicial de homenagem ao
histórico mas hoje caquético Alan Stivell, ao passeio final pela Grécia e pela
Sérvia, culminando em casa com um "an dro" reduzido à sua expressão
mais simples, ainda assim insuficiente para tirar o público dos assentos... –
os Kornog tiveram o ponto mais fraco nas baladas escocesas interpretadas por
McMenemy. Também ele insistiu em dificultar ao máximo, exagerando nas
ornamentações vocais, mas desse esforço acabou por resultar desequilíbrio e a sensação
de algum despropósito.
Romper a monotonia
com música irlandesa
Pesados os prós e os contras, o saldo foi, sem discussão,
favorável aos Kornog, que mostraram estar ao nível de outras bandas bretãs que
já passaram pelo Intercéltico, como os Skolvan, Strobinell, Gwendal, Barzaz e
Trio Mollard-Pennen. O público, que praticamente encheu o Coliseu, teve a mesma
opinião e aplaudiu de pé.
Depois,
quem se atreveu a enfrentar a noite, no bar, ao melhor estilo do filme
"Casablanca", do hotel Vila Galé, foi recompensado. Não que música da
banda alugada para preencher o serão, os Mamute, uma mistura engraçada de
folclore português, folk rock dos anos 70 e uma versão de um tema dos Young
Marble Giants, fosse capaz de estancar o ruído de fundo, mas porque o tal
imprevisto aconteceu. O mesmo imprevisto de que têm sido feitas algumas das
lendas do Intercéltico.
Desta feita
aconteceu quando dois irmãos espanhóis, um violinista e um flautista, ambos
notáveis e anónimos, mais um inglês, Marten Bailey (faz presentemente parte dos
Salamander, uma banda portuguesa sobre a qual falaremos em breve e que dará,
estamos certos, que falar...) decidiram romper a monotonia com uma sessão
imparável de música irlandesa. Entusiasmados, juntaram-se-lhes três dos
elementos dos Kornog (só Lemaître ficou de fora) para uma "jam
session" que só acabou quando a gerência do hotel achou já serem horas de
ir toda a gente dormir. Para a cama já tinham ido mais cedo as duas
gaitas-de-foles galegas que tentaram, em vão, juntar-se à festa. É que a
pujança das ponteiras não deixava ouvir mais nada e os que já lá estavam
jogavam na subtileza.
No final do
primeiro dia do Intercéltico, que hoje termina com um "set" em duas
partes dos irlandeses De Danann, Avelino Tavares, da MC-Mundo da Canção,
responsável pela organização do festival, era um homem feliz, até pela garantia
dada pela Câmara Municipal do Porto, de que o Intercéltico do próximo ano irá
ser "uma coisa em grande". O deste ano já começou a sê-lo.
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