CULTURA
TERÇA-FEIRA,
28 MAI 2002
Zoè: a Itália em transe no
festival folk do Seixal
PRIMEIRO FIM-DE-SEMANA DAS
CANTIGAS DO MAIO
Os Zoè, de
Itália, quebraram o clima de normalidade vigente no primeiro de dois
fins-de-semana folk no Seixal
Cumprido o primeiro fim-de-semana do Festival
Cantigas do Maio do Seixal, fica-se com a ideia de que a folk, apresentada em
moldes convencionais, estagnou em velocidade de cruzeiro. O panorama editorial
também não é dos mais famosos. Depois dos "booms" da "celtic
music" e das músicas do chamado Terceiro Mundo, nos anos 80, e do fenómeno
escandinavo desencadeado na década passada pelos Hedningarna, a surpresa e os
golpes de génio ou desapareceram (a exceção continua a ser a Irlanda mas esse
é, de há muito, um caso à parte...) ou são desprezados por uma indústria que
finalmente conseguiu aquilo que queria: mexer e temperar como bem lhe apetece a
sopa global da "world music". Triunfo amargo. Amargo sobretudo para a
música tradicional, não para os "big bosses", que depois de chuparem
até ao tutano os restos de algo que já não é carne nem peixe apertarão decerto
nas presas outro petisco qualquer... Quanto à folk, perdida a identidade para
alguns, terá que voltar a mergulhar na terra e a reapreender o seu sabor.
Tudo
isto a propósito das Cantigas que, conscientes da fase atual que este tipo de
música atravessa, teve a coragem de submeter a programação deste ano à égide
das "Músicas de Minorias". O que não obstou a que, nas duas noites, a
Fábrica Mundet estivesse a abarrotar e apenas a música dos italianos Zoè soasse
a "minoritária"... Houve boa música sem que tenha havido grande
música. Profissionalismo a rodos mas ausência da centelha que separa o génio da
competência.
Na
sexta-feira, a grande desilusão – ou nem isso, mesmo as desilusões deixaram de
ser grandes... – veio dos galegos Berroguetto. O novo álbum, "Hepta",
funcionou ao vivo como um espartilho. O grupo liderado por Anxo Pintos levou ao
Seixal a compostura de arranjos com pouca elasticidade, dando mais a ideia de
uma máquina bem oleada do que a experiência hermética que o disco faz imaginar.
Mesmo assim, progressivamente, a música foi-se chegando à "muiñeira"
e a outras modalidades tradicionais galegas, sem sacrifício da vertente
inovadora que sempre a caracterizou. A surpresa aconteceu mesmo no final,
quando a cantora Uxia (presente no Seixal na qualidade de jornalista...) foi
convidada a juntar-se ao grupo no palco.
Sorriso de
gozo
Atuaram na primeira parte os O Ó Que Som Tem,
em trio composto por Rui Júnior, Fernando Molina e João Luís Lobo. Mais solto
do que em anteriores ocasiões, o Ó abriu-se num sorriso de gozo. Um regabofe de
polirritmias e marcações que teve mais a ver com um concerto de rock do que
qualquer louvor ao folclore. Rui Júnior juntou o humor ao rigor e os três
jogaram à bola com os tambores, esfolaram as baterias, chegando a mimar batidas
tecno numa exploração sem limites dos vários registos que a percussão tem para
oferecer.
Domingo
começou na Fábrica Mundet com os Zoè, do Sudeste de Itália, a fazerem jus ao
mote das "minorias". Não sangraram das mãos, como se diz que às vezes
acontece aos seus dois tocadores de pandeireta, mas a música, sendo simples na
forma, teve exatamente aquilo que faltara na véspera aos galegos: força e
visceralidade. Movimento e fogo. Sem os arranjos (às vezes arranjinhos...)
ditados pelo intelecto, os Zoè dependem da repetição de onde nascem os clímaxes
das percussões, das vozes em contraponto das duas cantoras e do acordeão.
Provaram possuir a chamada "trance quality", qualquer coisa saída do
fundo que faz girar e entontece.
Algo
que os finlandeses Gjallarhorn, que atuaram a seguir, também tentaram
despoletar mas só a espaços conseguiram. A voz, o violino, as flautas e as
tranças louras da vocalista Jenny Wilhelms impuseram-se visual e musicalmente
numa música que tentou, quase em desespero de causa, escapar ao berço de
classicismo que a viu nascer. Sobretudo à custa do didjeridu de Tommy
Mansikka-Aho, elemento primal e transgressor dos Gjallarhorn, a capitalizar o
legado, mas também os tiques, do petardo Hedningarna.
Já
muito depois da meia-noite, na tenda-convívio montada alguns metros abaixo do
chapitô principal, teve lugar a segunda e mais licenciosa parte do ritual
festivaleiro: cerveja, bifanas, conversa, gaitas-de-foles e danças espontâneas
até o sol nascer. A alegria do costume.
As
pessoas habituam-se e gostam. Curiosamente, também gostam de se desabituar...
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