CULTURA
TERÇA-FEIRA,
5 NOV 2002
Um cântico
para Dolly
“Todas as
criaturas têm uma canção, o que é que elas cantam?” A pergunta, formulada por
robot em “Three Tales”, vídeo-ópera de Steve Reich e Beryl Korot, é uma
interrogação sobre o humano e a sua relação com a tecnologia
Steve Reich. Vídeo "state of the art".
Novas tecnologias. Enfie-se no pacote da
"ópera" um dos magos da escola minimalista americana dos anos 60,
imagens em ecrã gigante e um computador eminência parda de uma obra, apesar de
tudo animada ainda pelo sopro de humanidade do Ensemble Modern e do grupo vocal
Synergy e... clique. Truque de hipnose.
Acontece que a forma como o
truque é executado remete para um exibicionismo tecnológico que serve de
disfarce ao academismo. Reich demorou mais tempo do que Philip Glass, mas
também ele acabou por se instalar no conforto dos seus próprios
"clichés", afinal de contas, sempre passíveis de serem chamados de
"estilo".
Em termos musicais, "Three
Tales", como se ouviu alguém comentar na sala, é uma espécie de "best
of" da obra do compositor que combina resquícios de minimalismo
domesticado, polifonias vocais cuja beleza é posta em relevo na primeira das
três "histórias" de "Three Tales", "Hindenburg"
(indicadoras do interesse de Reich pela música do pré-barroco) e o "sampling"
intensivo. As imagens vídeo de Beryl Korot caem nestas maquinações como mosca
no mel. Sincronismo perfeito entre música e imagens, mas também entre a
execução em tempo real e a realidade tratada composta pelo material documental.
Matemática em acção.
"Three tales" está
cheia de números e geometrias. Talvez porque, como diz uma das personalidades
sonora e visualmente "manipuladas" em "Dolly", Marvin
Minsky, professor de engenharia eléctrica e ciência da computação, "a
mente é uma máquina de carne". Todavia, existe tragédia. Não uma tragédia que
afete diretamente e altere o sentido das nossas vidas (isso era lá com os
gregos, ou com esse maluco do Artaud...), mas, mesmo assim, a demonstração de
uma inquietação.
"Bikini", segunda das
"tales", joga com a dilatação do tempo, preparando milimetricamente o
olhar para a destruição que todos sabemos que irá acontecer. A repetição
obsessiva da contagem decrescente, o avião que descola uma e outra vez, a
acumulação de detalhes (rostos, mostradores, o céu), criam um longo intervalo
de ausência narrativa e uma tensão que a música de Reich preenche como um coro
de ecos, com os cantores do grupo Synergy a respresentarem a mesma pose e
vestuário dos "homens máquinas" dos Kraftwerk.
"Dolly", terceira e
última sequência de "Three Tales", é ideologicamente a mais
interessante, mas peca por ser, em termos formais, a mais redutora e
redundante. O mote é dado pela clonagem (lá estão Dolly, a mitificação do DNA e
a proclamada "independência" científica) derivando para a avaliação
do corpo humano, da inteligência artificial e, em último grau, insinuar a
montagem de uma nova humanidade na qual, como afirma Rodney Brooks,
investigador de engenharia de robots inteligentes e da inteligência humana
através da construção de robots humanóides, "estamos a começar a trazer a
tecnologia para os nossos corpos".
No ecrã repetem-se os rostos e
as declarações de cientistas, sociólogos e místicos (entre outros, Ruth Deech,
Richard Dawkins, Jaron Lanier, Steven Pinker, Robert Pollack, Cynthia Breazal,
mas também o rabi Adin Steinsaltz), enquanto as vozes do coro e o sampling
prolongam e repetem até à exaustão síncopes fonéticas e palavras de ordem
("máquinas, máquinas inteligentes", a mais repetida), música e vídeo
geradores de duplos e mimetismos, em clonagem recíproca.
"O corpo humano é
extremamente limitado. Adoraria fazer um 'upgrade' a mim próprio" (Kevin
Warwick, professor de cibernética que implantou no seu próprio corpo um pequeno
computador e advoga a transformação do homem em cyborg), "Se todos
pedíssemos provas antes de acreditarmos nalguma coisa, as religiões não
chegariam a lado nenhum" (Richard Dawkins, autor do
"best-seller" "O Gene Egoísta"), "Se eu fizer um
'scan' ao teu cérebro, e se fizer o 'download' dessa informação, terei um bocado
de ti, aqui mesmo no meu computador pessoal" (Ray Kurzweil, inventor do
sintetizador com o seu nome), são máximas que, no mínimo, obrigam a pensar. O
público, que em número razoável, compareceu no CCB, aplaudiu de pé, antes de
pensar.
À laia de epílogo pertenceu a
Kismet, robot humanóide concebido por Cynthia Breazal para interagir com seres
humanos, a única frase que se diria nascida de uma alma: "Todas as
criaturas têm uma canção. O que é que elas cantam?".
Natália Correia costumava
referir-se aos desalmados. Os que não têm. Nem alma nem canção.
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