20/10/2016

Um cântico para Dolly [Steve Reich e Beryl Korot]

CULTURA
TERÇA-FEIRA, 5 NOV 2002

Um cântico para Dolly

“Todas as criaturas têm uma canção, o que é que elas cantam?” A pergunta, formulada por robot em “Three Tales”, vídeo-ópera de Steve Reich e Beryl Korot, é uma interrogação sobre o humano e a sua relação com a tecnologia

Steve Reich. Vídeo "state of the art". Novas tecnologias. Enfie-se no pacote da "ópera" um dos magos da escola minimalista americana dos anos 60, imagens em ecrã gigante e um computador eminência parda de uma obra, apesar de tudo animada ainda pelo sopro de humanidade do Ensemble Modern e do grupo vocal Synergy e... clique. Truque de hipnose.
                Acontece que a forma como o truque é executado remete para um exibicionismo tecnológico que serve de disfarce ao academismo. Reich demorou mais tempo do que Philip Glass, mas também ele acabou por se instalar no conforto dos seus próprios "clichés", afinal de contas, sempre passíveis de serem chamados de "estilo".
                Em termos musicais, "Three Tales", como se ouviu alguém comentar na sala, é uma espécie de "best of" da obra do compositor que combina resquícios de minimalismo domesticado, polifonias vocais cuja beleza é posta em relevo na primeira das três "histórias" de "Three Tales", "Hindenburg" (indicadoras do interesse de Reich pela música do pré-barroco) e o "sampling" intensivo. As imagens vídeo de Beryl Korot caem nestas maquinações como mosca no mel. Sincronismo perfeito entre música e imagens, mas também entre a execução em tempo real e a realidade tratada composta pelo material documental. Matemática em acção.
                "Three tales" está cheia de números e geometrias. Talvez porque, como diz uma das personalidades sonora e visualmente "manipuladas" em "Dolly", Marvin Minsky, professor de engenharia eléctrica e ciência da computação, "a mente é uma máquina de carne". Todavia, existe tragédia. Não uma tragédia que afete diretamente e altere o sentido das nossas vidas (isso era lá com os gregos, ou com esse maluco do Artaud...), mas, mesmo assim, a demonstração de uma inquietação.
                "Bikini", segunda das "tales", joga com a dilatação do tempo, preparando milimetricamente o olhar para a destruição que todos sabemos que irá acontecer. A repetição obsessiva da contagem decrescente, o avião que descola uma e outra vez, a acumulação de detalhes (rostos, mostradores, o céu), criam um longo intervalo de ausência narrativa e uma tensão que a música de Reich preenche como um coro de ecos, com os cantores do grupo Synergy a respresentarem a mesma pose e vestuário dos "homens máquinas" dos Kraftwerk.
                "Dolly", terceira e última sequência de "Three Tales", é ideologicamente a mais interessante, mas peca por ser, em termos formais, a mais redutora e redundante. O mote é dado pela clonagem (lá estão Dolly, a mitificação do DNA e a proclamada "independência" científica) derivando para a avaliação do corpo humano, da inteligência artificial e, em último grau, insinuar a montagem de uma nova humanidade na qual, como afirma Rodney Brooks, investigador de engenharia de robots inteligentes e da inteligência humana através da construção de robots humanóides, "estamos a começar a trazer a tecnologia para os nossos corpos".
                No ecrã repetem-se os rostos e as declarações de cientistas, sociólogos e místicos (entre outros, Ruth Deech, Richard Dawkins, Jaron Lanier, Steven Pinker, Robert Pollack, Cynthia Breazal, mas também o rabi Adin Steinsaltz), enquanto as vozes do coro e o sampling prolongam e repetem até à exaustão síncopes fonéticas e palavras de ordem ("máquinas, máquinas inteligentes", a mais repetida), música e vídeo geradores de duplos e mimetismos, em clonagem recíproca.
                "O corpo humano é extremamente limitado. Adoraria fazer um 'upgrade' a mim próprio" (Kevin Warwick, professor de cibernética que implantou no seu próprio corpo um pequeno computador e advoga a transformação do homem em cyborg), "Se todos pedíssemos provas antes de acreditarmos nalguma coisa, as religiões não chegariam a lado nenhum" (Richard Dawkins, autor do "best-seller" "O Gene Egoísta"), "Se eu fizer um 'scan' ao teu cérebro, e se fizer o 'download' dessa informação, terei um bocado de ti, aqui mesmo no meu computador pessoal" (Ray Kurzweil, inventor do sintetizador com o seu nome), são máximas que, no mínimo, obrigam a pensar. O público, que em número razoável, compareceu no CCB, aplaudiu de pé, antes de pensar.
                À laia de epílogo pertenceu a Kismet, robot humanóide concebido por Cynthia Breazal para interagir com seres humanos, a única frase que se diria nascida de uma alma: "Todas as criaturas têm uma canção. O que é que elas cantam?".
                Natália Correia costumava referir-se aos desalmados. Os que não têm. Nem alma nem canção.

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