18/10/2016

Festival de Sines a roçar a perfeição

CULTURA
DOMINGO, 28 JULHO 2002

Festival de Sines a roçar a perfeição

Cristina Branco, Hedningarna e David Murray foram os primeiros trunfos do 4º Músicas do Mundo que este fim-de-semana decorreu em Sines.
World music soletrada com as letras da diferença

Fenomenal. Atingido o quarto ano de vida, o festival Músicas do Mundo (FMM) de Sines atingiu um nível qualitativo de se lhe tirar o chapéu. Dom som e das luzes à qualidade da música e ao ambiente que se respira dentro e fora do castelo onde os concertos têm lugar, tudo tem funcionado a roçar a perfeição. Cristina Branco e Hedningarna (no dia de abertura, quinta-feira), David Murray Big Band e Los de Abajo (sexta-feira) rubricaram atuações memoráveis, qualquer delas representativa de um conceito de world music que não se esgota na prática de fórmulas ortodoxas.
                Há quem se irrite ao ver entrar e sair sons politicamente incorretos pela porta de emergência da tradição. Houve quem se irritasse e comentasse rabugento que o que Cristina Branco canta não é fado mas, que raio, “a rapariga até tem voz”. Ela esteve-se nas tintas e, simplesmente, cantou, mais solta e sensual do que alguma vez a vimos e ouvimos em palco. Numa entrega à noite, à luz e às notas de guitarra que Custódio Castelo lhe ia lançando em dádiva e desafio.
                A fadista, perdão, a cantora não receou tocar na memória de Amália, navegando nos “Barcos negros” da saudade, como não hesitou em timbrar a voz na música popular ou no pós-fado-canção marcado pelo mesmo registo de nobreza melódica que João Braga introduziu na música de Lisboa. “Corpo iluminado” e “O descobridor” deram o mote, mas também já as melodias do próximo álbum, “Nu”, que será sobre poesia erótica. Custódio Castelo liderou o grupo de guitarras numa sequência instrumental que revisitou Paredes e iludiu a redundância, aglutinando, colorindo e trocando as certezas ao flamenco, à música árabe, às escalas chinesas e ao… fado. Castelo poderá ser, caso queira arriscar ainda mais nas notas que tem dentro de si, um igual de Stephan Micus.
                Cristina Branco mais do que uma grande intérprete, não do fado mas do sentimento que este encerra e que de tão português é universal, mostrou estar disposta a ir ainda mais longe. Pelo caminho, que poucos ousam da transcendência.

Da folk a um Big Mac latino
Mas a noite tinha reservadas outras maravilhas. Bem mais violentas, por sinal. Os Hedningarna cumpriram o que deles se esperava, dando da folk com origem na Suécia a imagem de combustão de passado e futuro, em que diabos e anjos dançam de mãos dadas. Com o violinista, Magnus Stinnerbom, a fazer as vezes de “showman”, e os veteranos Anders Norudde e Hallbus Totte Mattsson a usarem o “harding fiddle”, a gaita-de-foles e a sanfona como armas de guerra, a surpresa maior veio das duas cantoras, a regressada Tellu Virkkala e Liisa Matveinen, esta última verdadeiramente endiabrada. Cantaram canções para expulsar demónios, apaparicaram o amor numa tijela de sarcasmo, oferecendo um romance escrito com as letras de uma “Pornopolka”, da mesma forma que autorizaram o silêncio quando as respetivas vozes se entrelaçaram na nudez sem proteção do canto “a capella”. Quer dizer: a máquina Hedningarna carburou a cem por cento. Resultado: quando o grupo se quis ir embora, ninguém deixou. Três encores souberam a pouco. Acontece que um avião – explicaram – esperava por eles dali a poucas horas para os levar para nova arena de combate.
                Na sexta-feira, a world music chamou-se jazz. E também neste caso, como no de Cristina Branco, a música desencadeou resistências. Entre quem, em tom de desdém, falasse em “jam session”, e a mais do que imerecida inexistência de pedido de encore, a “big band” de David Murray deu lições a quem quisesse aprender. Embora o contexto e os músicos fossem cubanos (“Havana Moods”, assim vinha anunciado no programa), o jazz, sem facilitismos, foi o grande triunfador. Sem recurso a etiquetas. A Cuba que esteve em Sines foi a de filial importante do jazz. E David Murray foi o mestre que se conhece. Pena, desta vez, e só desta, Sines não ter entrado “in the mood”: se, como diretor da orquestra, foi mais instigador e organizador de sensibilidades do que disciplinador, como solista chegou a ser exaltante. Do seu saxofone tenor – daqueles que têm dentro toda a história do jazz e ainda espaço para o que não vem escrito nos compêndios – saíram passes de sabedoria. Na memória ficará um solo absoluto, feito de arrojo, grito e oração (e alguma mágoa…) que deixou claro que o “free” não é, nunca foi, sinónimo de desordem mas a demanda de uma ordem nova. O espírito de Albert Ayler chegou a pairar no ar. Com a diferença de que Murray é uma alma “civilizada”…
                A fechar a noite de sexta-feira, o FMM abriu alas à tourada. Os mexicanos Los de Abajo não estiveram com meias medidas. Levaram tudo à frente com o seu Big Mac de salsa, reggae, cumbia e latinidades várias para dar ao pé. O público entrou no bailarico.

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