CULTURA
DOMINGO, 28
JULHO 2002
Festival de
Sines a roçar a perfeição
Cristina
Branco, Hedningarna e David Murray foram os primeiros trunfos do 4º Músicas do
Mundo que este fim-de-semana decorreu em Sines.
World music
soletrada com as letras da diferença
Fenomenal. Atingido o quarto ano de vida, o festival Músicas do
Mundo (FMM) de Sines atingiu um nível qualitativo de se lhe tirar o chapéu. Dom
som e das luzes à qualidade da música e ao ambiente que se respira dentro e
fora do castelo onde os concertos têm lugar, tudo tem funcionado a roçar a
perfeição. Cristina Branco e Hedningarna (no dia de abertura, quinta-feira),
David Murray Big Band e Los de Abajo (sexta-feira) rubricaram atuações
memoráveis, qualquer delas representativa de um conceito de world music que não
se esgota na prática de fórmulas ortodoxas.
Há quem se
irrite ao ver entrar e sair sons politicamente incorretos pela porta de
emergência da tradição. Houve quem se irritasse e comentasse rabugento que o
que Cristina Branco canta não é fado mas, que raio, “a rapariga até tem voz”.
Ela esteve-se nas tintas e, simplesmente, cantou, mais solta e sensual do que
alguma vez a vimos e ouvimos em palco. Numa entrega à noite, à luz e às notas
de guitarra que Custódio Castelo lhe ia lançando em dádiva e desafio.
A fadista,
perdão, a cantora não receou tocar na memória de Amália, navegando nos “Barcos
negros” da saudade, como não hesitou em timbrar a voz na música popular ou no
pós-fado-canção marcado pelo mesmo registo de nobreza melódica que João Braga
introduziu na música de Lisboa. “Corpo iluminado” e “O descobridor” deram o
mote, mas também já as melodias do próximo álbum, “Nu”, que será sobre poesia
erótica. Custódio Castelo liderou o grupo de guitarras numa sequência
instrumental que revisitou Paredes e iludiu a redundância, aglutinando,
colorindo e trocando as certezas ao flamenco, à música árabe, às escalas
chinesas e ao… fado. Castelo poderá ser, caso queira arriscar ainda mais nas
notas que tem dentro de si, um igual de Stephan Micus.
Cristina Branco
mais do que uma grande intérprete, não do fado mas do sentimento que este
encerra e que de tão português é universal, mostrou estar disposta a ir ainda
mais longe. Pelo caminho, que poucos ousam da transcendência.
Da folk a um
Big Mac latino
Mas a noite tinha reservadas outras maravilhas. Bem mais
violentas, por sinal. Os Hedningarna cumpriram o que deles se esperava, dando
da folk com origem na Suécia a imagem de combustão de passado e futuro, em que
diabos e anjos dançam de mãos dadas. Com o violinista, Magnus Stinnerbom, a
fazer as vezes de “showman”, e os veteranos Anders Norudde e Hallbus Totte
Mattsson a usarem o “harding fiddle”, a gaita-de-foles e a sanfona como armas
de guerra, a surpresa maior veio das duas cantoras, a regressada Tellu Virkkala
e Liisa Matveinen, esta última verdadeiramente endiabrada. Cantaram canções
para expulsar demónios, apaparicaram o amor numa tijela de sarcasmo, oferecendo
um romance escrito com as letras de uma “Pornopolka”, da mesma forma que
autorizaram o silêncio quando as respetivas vozes se entrelaçaram na nudez sem
proteção do canto “a capella”. Quer dizer: a máquina Hedningarna carburou a cem
por cento. Resultado: quando o grupo se quis ir embora, ninguém deixou. Três
encores souberam a pouco. Acontece que um avião – explicaram – esperava por
eles dali a poucas horas para os levar para nova arena de combate.
Na
sexta-feira, a world music chamou-se jazz. E também neste caso, como no de
Cristina Branco, a música desencadeou resistências. Entre quem, em tom de desdém,
falasse em “jam session”, e a mais do que imerecida inexistência de pedido de
encore, a “big band” de David Murray deu lições a quem quisesse aprender.
Embora o contexto e os músicos fossem cubanos (“Havana Moods”, assim vinha
anunciado no programa), o jazz, sem facilitismos, foi o grande triunfador. Sem
recurso a etiquetas. A Cuba que esteve em Sines foi a de filial importante do
jazz. E David Murray foi o mestre que se conhece. Pena, desta vez, e só desta,
Sines não ter entrado “in the mood”: se, como diretor da orquestra, foi mais
instigador e organizador de sensibilidades do que disciplinador, como solista
chegou a ser exaltante. Do seu saxofone tenor – daqueles que têm dentro toda a
história do jazz e ainda espaço para o que não vem escrito nos compêndios –
saíram passes de sabedoria. Na memória ficará um solo absoluto, feito de
arrojo, grito e oração (e alguma mágoa…) que deixou claro que o “free” não é,
nunca foi, sinónimo de desordem mas a demanda de uma ordem nova. O espírito de
Albert Ayler chegou a pairar no ar. Com a diferença de que Murray é uma alma
“civilizada”…
A fechar a
noite de sexta-feira, o FMM abriu alas à tourada. Os mexicanos Los de Abajo não
estiveram com meias medidas. Levaram tudo à frente com o seu Big Mac de salsa,
reggae, cumbia e latinidades várias para dar ao pé. O público entrou no
bailarico.
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