CULTURA
TERÇA-FEIRA,
30 JUL 2002
Multidão
enche castelo de Sines
FESTIVAL
MÚSICAS DO MUNDO
Rock,
decibéis e fogo. A fórmula é imbatível, quando se trata de animar multidões.
Faltará encontrar o equilíbrio certo entre a superprodução e sons mais intimistas.
Para a organização, uma só palavra: impressionante
Sábado, última noite
de música no castelo de Sines, foi de bulício. Com o americano Popa Chubby, os
Yat-Kha, de Tuva, e os moçambicanos Mabulu a fazerem baixar uma média do
Festival Músicas do Mundo que, sem eles, teria sido elevadíssima. É que nisto
dos festivais em larga escala, para multidões, é ténue a linha que separa o
grande espetáculo do exibicionismo. Culpa maior dos Yat-Kha. Tuva deu muita
parra e pouca uva.
Dois dias antes houve Cristina
Branco e guitarras de fado, numa demonstração de que o silêncio, as respirações
sublimes e os pormenores quase segredos da execução conseguem cativar a atenção
de milhares sem berrar pregões nem sugarem os dínamos elétricos até ao tutano.
Além dela, os Hedningarna e
David Murray impuseram-se apenas pelo poder da sua música. Há quem o tenha sem
dele fazer alarde nem se socorrer de truques. Os suecos da folk herética e o
saxofonista norte-americano têm-no como algo natural, por isso os seus
concertos deixaram marcas que a erosão da memória não conseguirá apagar. Já os
Los de Abajo fizeram macacada e era isso que se conhecia deles e era isso que
se esperava e foi isso que fizeram com profissionalismo e a dose certa, ainda
que já irremediavelmente domesticada, de irreverência.
150 quilos de “blues”
Irreverência que em
Popa Chubby, 150 quilos de carne, uma guitarra elétrica e uma paixão evidente
pelos "blues", é também reverência à tradição.
Popa não é um
"bluesman" de raiz mas um rocker ainda mal curado das chibatadas punk
que descobriu nos "blues" uma mais funda forma de expressão. O
"blues" e o "rhythm 'n' blues" correm-lhe no sangue mas o
coração tem ainda muito que bombear. A quem tem pele clara e quer tocar
"blues" exige-se período longo de estágio no sofrimento, na raiva e
no sentimento de exclusão. Popa tem a força (pudera, com aquele corpanzil...)
mas falta-lhe por enquanto aquele "it" interior que faz a diferença
entre quem sabe tocar os "blues" e quem sabe ser tocado por eles. Ele
sabe-a mas não a sabe toda. Por isso as suas longas dissertações na guitarra
ou, no final, o alívio da tensão no rock, em versões algo entediantes de
"Walk on the wild side", de Lou Reed, e do standard rockeiro
imortalizado por Hendrix, "Hey Joe", tenham soado mais mecânicos do
que apaixonados. Popa é pop, a sua figura de "mau" com bom coração
ajuda na criação de uma imagem comercializável. Quanto aos "blues",
esses que pesam mas voam, têm toda a paciência do mundo e hão-de esperar por
Popa Chubby de braços abertos.
Gritos de Tuva
Agora gritar como
fizeram os siberianos de Tuva, Yat-Kha, é que não havia necessidade.
Compreende-se que não haja muita gente interessada em ouvir as típicas
multifonias vocais ou o hermetismo que rodeia a música desta região da
Federação Russa no seu contexto mais puro e regional e que, por isso, o grupo
se socorra de todas as batidas que a música ocidental lhe põe à disposição.
Mas, com franqueza, o resultado, embora barulhento, é pobre.
Os Yat-Kha deitaram a mão ao
eurodisco, ao rock, à tecno primitiva, ao batido tribal, à distorção elétrica,
como suporte, ora das tradicionais técnicas de multifonia, ora dos rugidos
guerreiros de um vocalista completamente empenhado (e exasperado) em fazer a
festa a todo o custo. Música de fusão? Antes brutalidade! Mas aquela que apela
aos instintos mais básicos. Tuva ficou mais longe...
Moçambique, pelo contrário,
ficou bem mais perto. Os Mabulu, a quem coube fechar o festival, entraram
dispostos a tocar até de madrugada ("vamos ficar aqui até às 5 da
manhã", fartaram-se de dizer, embora tenham parado às duas...) e deram
tudo por tudo. Dispararam o bordão "tá-se bem? allright...!" de cinco
em cinco minutos e carregaram a fundo no acelerador da "marrabenta".
Sem peneiras, mas também sem grandes requintes, conseguiram aquecer os ânimos,
levando-os não à fusão, mas à ebulição, com o palco a ser invadido por dezenas
de espontâneos que se quiseram juntar à dança com os músicos, tendo como fundo
uma bandeira de Moçambique.
Só foi pena a falta de
"timing" do fogo-de-artifício que – como já é tradicional no festival
– irrompe ao bater da uma hora em ponto para se juntar à música. Quando bate
certo, é a euforia. Infelizmente, não foi, desta vez, o caso. Os foguetes e as
luzes estalaram precisamente durante uma das poucas canções tristes dos Mabulu,
sobre alguém a quem roubaram a mulher, uma canção de choro e mágoa. Fez um
bocado impressão. Mas o coração alheia-se. Ficaram os olhos de cinco mil, a
brilhar, apontados para as luzes do céu.
Um festival na idade adulta
Quinze mil pessoas terão passado pelo castelo de Sines
para assistir aos concertos do 4º Festival Músicas do Mundo que durante três
dias (de 25 a 27) animou esta vila do litoral alentejano. Assistência recorde
que comprova o êxito organizativo do certame. Temos mais um festival sénior a
juntar ao Intercéltico do Porto e ao Cantigas do Maio, agora que o Ritmos do
Mundo se finou e os Encontros Musicais da Tradição Europeia vão deixando
saudades.
Sines
passou a prova com distinção. O som e as luzes estiveram imaculados, a condução
e articulação dos pequenos e grandes factos que constroem (e não raras vezes
destroem) um festival, fez-se com arte e engenho, corrigindo-se falhas
anteriores e encontrando-se soluções concretas para os problemas. A otimização
do processo de entrada e saída no castelo, a separação entre o espaço de
convívio e a área de escuta, a instalação de ecrãs gigantes dentro e fora do
castelo são sinais de que a Câmara Municipal de Sines não brinca em serviço e
de que o Músicas do Mundo tem mesmo pernas para andar.
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