JAZZ
DISCOS
PÚBLICO
12 OUTUBRO 2002
Shorter, Giuffre, Bley, Swallow. O futuro já foi feito por eles. Impresso numa
pegada ou escrito num diário. Há quem jogue noutro tabuleiro. Tudo depende da
força do olhar. E de ser. Mas isso já muito poucos arriscam…
Diário
de uma vida como lição para a vida diária
Se o que um homem é
está escrito no seu nome, reconheça-se que tal verdade não se aplica no caso de
Wayne Shorter. "Mais curta" não é certamente a música de
"Footprints Live" do que aquela que o tornou notável, nos anos 60,
enquanto "sideman" de Miles Davis, ou a que, de seguida, ajudou a
impor aos mais céticos a heresia do jazz rock, através dos Weather Report.
"Footprints Live" é ainda, por incrível que pareça, o primeiro álbum
ao vivo de sempre deste notável executante dos saxofones tenor e soprano a quem
a pop igualmente agradece a disponibilidade (Joni Mitchell, Carlos Santana e os
Steely Dan que o digam). Gravado em Julho do ano passado em festivais em
Espanha, França e Itália, contou com a participação de Danilo Perez, no piano,
John Patitucci, no baixo, e Brian Blade, na bateria, na transposição para o
palco de clássicos da sua anterior discografia como "Footprints",
"Atlantis", "Juju", ou a soturna "Valse triste",
de Jean Sibelius. Impressiona a energia e o lirismo de uma música que alia a
investida inquisitiva e a frase-faca de Coltrane, sem o tormento, a uma
delicadeza sem limites. Uma pegada impressa com a força de um
"statement".
O caso dos três homens que se
seguem não é menos sério. Três lendas do jazz moderno: Jimmy Giuffre, Paul
Bley, Steve Swallow. A reedição das duas sessões, respetivamente registadas em
estúdio a 16 e 17 de Dezembro de 1989, e intituladas "The Life of a Trio:
Saturday" e "The Life of a Trio, Sunday", justifica uma renovada
chamada de atenção pelo facto de ter sido finalmente objeto de remasterização.
É da vida de um trio que realmente se trata. De uma experiência a três, da qual
resultaram, no início dos anos 60, "1961", a obra-prima "Free
Fall" e, já na década seguinte e com selo ECM, o par "Fusion" e
"Thesis". Demorou quase 20 anos até se encontrarem de novo e
restabelecerem a química. A solo, em duo ou em trio, as filigranas de "The
Life of a Trio" tecem-se na cumplicidade e no silêncio, na memória das
notas antigas e na redescoberta do seu gosto. No lirisno de Swallow, no
impressionismo abstrato de Bley e na genialidade de Giuffre, um dos mais
inteligentes músicos da história de jazz, para quem cada frase do saxofone e do
clarinete ostenta o carater de um tratado de filosofia. Dois discos de tensões,
mais do que de explosões, para ouvir com muito tempo e muito cuidado.
Menos seguro do seu estatuto
está o alemão Alfred Harth. A polícia do jazz há anos que o tem debaixo de
olho. Harth não tem "heart" para o jazz, pelo menos aquele que
queima, há quem diga, quem acuse. Talvez não. Mas se o seu currículo suscita
suspeitas no meio, já entre os monstros e os mutantes do chamado rock/jazz de
câmara formado na guerrilha do movimento "RIO" ("Rock in
Opposition"), o seu nome é respeitado, pelo seu envolvimento quer no
anarco-jazz eletrónico em duo com Heiner Goebbels, quer nos igualmente
politizados Cassiber, sob a batuta de Chris Cutler, ou nos bizarros Vladimir
Estragon. O seu Trio Viriditas, com Wilber Morris (baixo e voz) e Kevin Norton
(bateria, vibrafone e percussão), em "Waxwebwind@ebroadway" não vai
tão longe, ou vai mais longe, dependendo do ponto de vista do observador, sendo
em qualquer dos casos inegável que o seu saxofone e o seu clarinete se inserem
na mesma universidade nova onde lecionam mestres como Sclavis ou Portal.
Ocasionalmente emaranhados nas quadraturas estáticas de alguma "música
contemporânea" ou nos clichés do "free" (quem não os tem?...),
mas invariavelmente livres para a qualquer momento se movimentarem na direção
desejada. Um tema como "Starbucks" balouça até num arremedo de
"swing"...
A capa é um horror (falha de
gosto aliás em que a Palmetto incorre com alguma frequência...), mas se os olhos
terão tendência para se desviar, os ouvidos sentir-se-ão, pelo contrário,
atraídos a penetrar no que o piano de Orrin Evans tem para oferecer em
"Meant to Shine", álbum imbuído de algum misticismo, sem ousadias nem
pretensões de as ter, mas firme no pulso e enraizado na história até à ponta
nos cabelos. A este jazz, umas vezes tão doce e introspetivo que quase não se
dá por ele, tanto se poderá acusar de conformismo como louvar pela firmeza com
que se mantém no seu posto de bastião da tradição. Não faz ondas. Mas quando as
faz, como em "Don't write no shit about me", somos obrigados a
atender ao pedido. O piano de Orrin, a flauta e os saxofones em contraponto
multipistas de Ralph Bowen (incandescente em "Meant to shine"), o
baixo de Eric Revis e a bateria de Gene Jackson despertam da unanimidade para
jogarem na fricção e no desafio mútuo, outra das maneiras que o jazz tem para
fazer nascer a luz. Até porque Bill Evans só houve um, capaz de, mesmo quando
era piroso, ser um génio. Mas não há crise. Na Palmetto ninguém gosta de
extremismos...
Wayne Shorter
Footprints Live
Verve,
distri. Universal
8|10
Paul Bley, Jimmy Giuffre, Steve Swallow
The Life of a Trio: Saturday and Sunday
Owl, distri. Universal
9|10
Trio
Viriditas
Waxwebwind@ebroadway
Clean Feed,
distri. Trem Azul
7|10
Orrin Evans
Meant to Shine
Palmetto,
distri. Trem Azul
7|10
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