23/10/2016

Diário de uma vida como lição para a vida diária

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 12 OUTUBRO 2002

Shorter, Giuffre, Bley, Swallow. O futuro já foi feito por eles. Impresso numa pegada ou escrito num diário. Há quem jogue noutro tabuleiro. Tudo depende da força do olhar. E de ser. Mas isso já muito poucos arriscam…

Diário de uma vida como lição para a vida diária

Se o que um homem é está escrito no seu nome, reconheça-se que tal verdade não se aplica no caso de Wayne Shorter. "Mais curta" não é certamente a música de "Footprints Live" do que aquela que o tornou notável, nos anos 60, enquanto "sideman" de Miles Davis, ou a que, de seguida, ajudou a impor aos mais céticos a heresia do jazz rock, através dos Weather Report. "Footprints Live" é ainda, por incrível que pareça, o primeiro álbum ao vivo de sempre deste notável executante dos saxofones tenor e soprano a quem a pop igualmente agradece a disponibilidade (Joni Mitchell, Carlos Santana e os Steely Dan que o digam). Gravado em Julho do ano passado em festivais em Espanha, França e Itália, contou com a participação de Danilo Perez, no piano, John Patitucci, no baixo, e Brian Blade, na bateria, na transposição para o palco de clássicos da sua anterior discografia como "Footprints", "Atlantis", "Juju", ou a soturna "Valse triste", de Jean Sibelius. Impressiona a energia e o lirismo de uma música que alia a investida inquisitiva e a frase-faca de Coltrane, sem o tormento, a uma delicadeza sem limites. Uma pegada impressa com a força de um "statement".
                O caso dos três homens que se seguem não é menos sério. Três lendas do jazz moderno: Jimmy Giuffre, Paul Bley, Steve Swallow. A reedição das duas sessões, respetivamente registadas em estúdio a 16 e 17 de Dezembro de 1989, e intituladas "The Life of a Trio: Saturday" e "The Life of a Trio, Sunday", justifica uma renovada chamada de atenção pelo facto de ter sido finalmente objeto de remasterização. É da vida de um trio que realmente se trata. De uma experiência a três, da qual resultaram, no início dos anos 60, "1961", a obra-prima "Free Fall" e, já na década seguinte e com selo ECM, o par "Fusion" e "Thesis". Demorou quase 20 anos até se encontrarem de novo e restabelecerem a química. A solo, em duo ou em trio, as filigranas de "The Life of a Trio" tecem-se na cumplicidade e no silêncio, na memória das notas antigas e na redescoberta do seu gosto. No lirisno de Swallow, no impressionismo abstrato de Bley e na genialidade de Giuffre, um dos mais inteligentes músicos da história de jazz, para quem cada frase do saxofone e do clarinete ostenta o carater de um tratado de filosofia. Dois discos de tensões, mais do que de explosões, para ouvir com muito tempo e muito cuidado.
                Menos seguro do seu estatuto está o alemão Alfred Harth. A polícia do jazz há anos que o tem debaixo de olho. Harth não tem "heart" para o jazz, pelo menos aquele que queima, há quem diga, quem acuse. Talvez não. Mas se o seu currículo suscita suspeitas no meio, já entre os monstros e os mutantes do chamado rock/jazz de câmara formado na guerrilha do movimento "RIO" ("Rock in Opposition"), o seu nome é respeitado, pelo seu envolvimento quer no anarco-jazz eletrónico em duo com Heiner Goebbels, quer nos igualmente politizados Cassiber, sob a batuta de Chris Cutler, ou nos bizarros Vladimir Estragon. O seu Trio Viriditas, com Wilber Morris (baixo e voz) e Kevin Norton (bateria, vibrafone e percussão), em "Waxwebwind@ebroadway" não vai tão longe, ou vai mais longe, dependendo do ponto de vista do observador, sendo em qualquer dos casos inegável que o seu saxofone e o seu clarinete se inserem na mesma universidade nova onde lecionam mestres como Sclavis ou Portal. Ocasionalmente emaranhados nas quadraturas estáticas de alguma "música contemporânea" ou nos clichés do "free" (quem não os tem?...), mas invariavelmente livres para a qualquer momento se movimentarem na direção desejada. Um tema como "Starbucks" balouça até num arremedo de "swing"...
                A capa é um horror (falha de gosto aliás em que a Palmetto incorre com alguma frequência...), mas se os olhos terão tendência para se desviar, os ouvidos sentir-se-ão, pelo contrário, atraídos a penetrar no que o piano de Orrin Evans tem para oferecer em "Meant to Shine", álbum imbuído de algum misticismo, sem ousadias nem pretensões de as ter, mas firme no pulso e enraizado na história até à ponta nos cabelos. A este jazz, umas vezes tão doce e introspetivo que quase não se dá por ele, tanto se poderá acusar de conformismo como louvar pela firmeza com que se mantém no seu posto de bastião da tradição. Não faz ondas. Mas quando as faz, como em "Don't write no shit about me", somos obrigados a atender ao pedido. O piano de Orrin, a flauta e os saxofones em contraponto multipistas de Ralph Bowen (incandescente em "Meant to shine"), o baixo de Eric Revis e a bateria de Gene Jackson despertam da unanimidade para jogarem na fricção e no desafio mútuo, outra das maneiras que o jazz tem para fazer nascer a luz. Até porque Bill Evans só houve um, capaz de, mesmo quando era piroso, ser um génio. Mas não há crise. Na Palmetto ninguém gosta de extremismos...

Wayne Shorter
Footprints Live
Verve, distri. Universal
8|10

Paul Bley, Jimmy Giuffre, Steve Swallow
The Life of a Trio: Saturday and Sunday
Owl, distri. Universal
9|10

Trio Viriditas
Waxwebwind@ebroadway
Clean Feed, distri. Trem Azul
7|10

Orrin Evans
Meant to Shine
Palmetto, distri. Trem Azul
7|10

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