27/10/2016

Supertramp encheram as medidas ao Atlântico

CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 22 ABRIL 2002


Supertramp encheram as medidas ao Atlântico

CONCERTO DUPLO DOS SUPERTRAMP EM LISBOA

O Pavilhão Atlântico, em Lisboa, esgotou-se para ouvir os Supertramp. Delírio com as canções antigas. Mas houve quem saísse só para não ouvir as do novo álbum, “Slow Motion”

Impressionante como os Supertramp conseguiram neste sábado fazer rebentar pelas costuras o desmesurado Pavilhão Atlântico, no Parque das Nações. Impressionante como os Supertramp utilizaram exatamente os mesmos vídeos que tinham trazido na sua primeira apresentação ao vivo em Portugal, há 22 anos, em Cascais. Impressionante a diversidade etária e social do público presente. Impressionante a festa. Impressionante a gritaria. Impressionante tudo. Impressionante.
            Em conformidade, e numa análise ao que musicalmente se passou no primeiro dos dois concertos consecutivos da banda britânica no Pavilhão Atlântico, em Lisboa, vamos resistir à tentação do trocadilho fácil que consiste em acrescentar um “A” ao nome da banda. Além disso não iremos desrespeitar a memória de todos quantos em 1974 coraram de prazer e excitação a ouvir em casa os sons lancinantes de “Crime of the Century” e este fim-de-semana, como se nada se tivesse passado entretanto, lá estiveram para repetir a dose. Nem iremos quebrar a magia dos isqueiros acesos. Longe de nós tal ideia. Assim, preferimos juntar-nos à mole humana e gritar com não menos entusiasmo: “Impressionaaaaaaante!”.
            Só a música é que esteve uns furos abaixo da euforia reinante. Digamos, uns 450 furos abaixo.

Gente de todo o lado
Seja como for, o cenário estava montado para receber condignamente a banda que nos anos 70 gravou “Crime of the Century”, “Crisis? What Crisis?”, “Even in the Quietest Moments” e “Breakfast in America”. Gente de todas as idades e estratos sociais, irmanados no mesmo sonho lindo, ansiando por cantarolar canções como “School”, “Give a little bit” ou “Logical Song”: VIP e yuppies, hippies e pimbas, trintões e quarentões, trintonas e quarentonas, adolescentes e crianças levados pela mão dos pais. Toda a gente e nós também.
            Nesta noite épica, cantaram-se cânticos futebolísticos, bateu-se com os pés no chão fazendo estremecer a sólida estrutura do Multiusos, acompanharam-se as letras das canções mais conhecidas em coro, acenderam-se isqueiros, brilharam os olhos. Um espetáculo quase aterrador, na sua dimensão sociológica e telúrica.
            Quanto à música... Bem, a música... Digamos que os Supertramp, na sua já longa existência de 32 anos de oscilação entre o rock sinfónico e a pop, nunca foram carne nem peixe, pelo que talvez devam ser catalogados na categoria dos vegetais. Os quais, quando não consumidos em excesso, até constituem uma ementa saudável.
            No sábado, teve-se direito a uma ementa de mais de duas horas mas a digestão não parece ter sido difícil para ninguém. Os Supertramp tocaram as canções que toda a gente queria que tocassem, intercaladas por aquelas do novo álbum, “Slow Motion”, que ninguém estava interessada em ouvir. Os clássicos, como “The Logical Song” ou “Give a little bit”, foram “traídos” por um Rick Davies cuja voz visivelmente já não consegue chegar aos agudos e falseto dos “bons velhos tempos”, substituídos por um curioso registo de fantoche. Rick também demonstrou, com inteiro sucesso, que ao longo dos últimos 20 anos a sua técnica pianística se manteve rigorosamente inalterável, sem evoluir um niquinho que fosse. Entre a métrica ragtime e tiradas de pianomartelo, aventurou-se por longos solos sem entrada nem saída que quase sempre terminavam com a entrada explosiva da bateria.
            John Helliwell, nos saxofones, como já se percebera nos álbuns, provou ser de longe o melhor músico do grupo. Sem ser nenhum Charlie Parker, é provido de swing, fraseado fácil e um timbre caloroso que humaniza o tom prevalecente no espetáculo, de máquina a trabalhar para alimentar a memória das massas. Facto curioso: não foi nas canções conhecidas mas em algumas deambulações instrumentais do novo álbum, com sabor funk, que uma réstia de vida assomou e quase levou a retirar o tal “A” final acrescentado ao nome da banda. Mas mesmo nesses momentos de exceção, logo essa “soul” insuspeita descambou na toada mais-do-agrado-de-todos da tecno- martelos ou do “disco” a la Cerrone.

Os mesmos vídeos para as mesmas canções
Foi, todavia, no longo encore que fez o concerto terminar já muito perto da meia-noite, que os Supertramp deram a certeza absoluta de que o tempo não passa e que a evolução e a mudança são palavras vãs, ao projetarem os mesmos vídeos que já haviam utilizado em Cascais há 20 anos atrás. O mesmo filme a preto e branco de uma linha férrea percorrida em velocidade acelerada e, a terminar, em “Crime of the century”, o mesmo funil de estrelas, a simular uma viagem pelo cosmos que finalmente dá a ver a grade onde está aprisionado o temível “criminoso do século” que serve de capa ao álbum com o mesmo nome.
            Fruto ou não do acaso do alinhamento, os trágicos acontecimentos recentes ocorridos em Nova Iorque conferiram a “Crime of the century” uma estranha ressonância, dando inclusive a ideia de que os músicos estariam a sentir na pela uma dimensão trágica de que, pelas vias normais, andaram sempre arredados. Ou teria sido apenas um daquelas partidas que nos prega a imaginação... 
            O que ficou registado foi o delírio e a satisfação plena da multidão. 15 mil no sábado mais 15 mil ontem faz 30 mil. Caramba, 30 mil têm que ter razão. Ou não?

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