JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 28 DEZEMBRO 2002
2002 foi um bom ano para o jazz português. Dos
melhores, discograficamente falando. Sete propostas.
A jazzar em
português
é que a gente se
entende
Dos bons músicos que temos é lícito esperar bons
discos. Contámos sete, só este ano. Número mágica a prometer um futuro ainda
mais risonho. Carlos Baretto reincidiu. Depois de uma “Radio Song”, apimentada
com a presença do soprador francês Louis Sclavis, que fica como um dos melhores
registos do ano, “Solo Pictórico” mostra o outro lado deste exímio
contrabaixista. Solo absoluto, de sons e de cores (cada tema tem
correspondência numa obra pictórica também da sua autoria), espraia-se por uma
série de “variações” e “deambulações”, entrecortadas por “Round midnight”, de
Monk. Contido, de uma depuração extrema, nas execuções “a dedo”, Barretto abre
espaços imensos quando opta pelo arco, como nas deambulações com os números 2 e
3, em que de uma certa atitude “new age” percetível na primeira se eleva à pura
religiosidade, na segunda. Amplitude tímbrica, refrações oníricas, um sentido
universalista da melodia conjugam-se numa obra que dispensa o acessório para se
concentrar no essencial, que aqui é canto, mais do que solitário, solidário.
Cokm
dedicatórias a Morris e Goscinny, Edgar Pierre Jacobs, Hergé, Hugo Pratt,
Robert Crumb, Gilbert Sheldon, Bilal e Tardi e títulos como “I’m a poor
lonesome cowboy”, “Armadilha diabólica”, “As sete bolas de cristal”, “Blues dos
freak brothers” e “A mulher-armadilha”, só se poderia esperar balões
preenchidos por música de memória longa e leitura rápida. “Filactera”, com
“design” sonoro do guitarrista Mário Delgado, é uma homenagem à banda
desenhada, projeto ideologicamente próximo de “Vol pour Sidney” ou “Bandes
Originales du Journal de Spirou”, ambos editados na NATO. Carregado de
citações, respirando a Bill Frisell, quando calha a Delgado ser Lucky Luke,
ágil nos tempos mais “bopados”, servidos pelo saxofone dócil de Andrzej
Olejniczak e pelo contrabaixo sabido de Barretto, aos encontrões amigáveis com
a “gentalha” infetada da editora Recommended (Zero Pop, Orthotonics, Semantics…
em “Gatos e corvos”), bem-humorado na aerofagia, salvo seja, do trombone de
Claus Nymark, “Filactera” é jazz aos quadradinhos, histórias para ler de
ouvido, sem pretensões de inquietar o coração e confundir o pensamento.
Cinema
jazz
A
jazzar, a jazzar, José Eduardo, outro contrabaixista de créditos formados, fez
obra séria em “A Jazzar no Cinema Português”, gravado ao vivo com a sua “Unit”
no cineclube de Faro. Pegar em “standards” conotados com a sétima arte nacional
como “Se eu fosse um dia o teu olhar”, de Pedro Abrunhosa, “Balada da Rita” e
“Os demónios de Alcácer-Quibir”, de Sérgio Godinho, “Grândola, Vila Morena” e
“Os índios da meia-praia”, de José Afonso, “Eu vi este povo a lutar”, de José
Mário Branco, “Peregrinações”, de Fausto ou “Verdes anos”, de Carlos Paredes,
não é tarefa para todos. Operação de alquimia, mudar o fato e refazer o feito.
Eduardo não esquece em nenhuma ocasião a trave mestra melódica que sustenta
cada composição mas constrói tão longe e tão fortes quanto pode as paredes.
Jesus Santadreu, no saxofone tenor, tem técnica e intuição apuradas, o que lhe
permite fazer, com brilho, o que faz em “Grândola, Vila Morena”. O que para
outros seria armadilha mortal, nele é via de “free”, fazendo jus à revolução. O
longo medley formado pelo par “Os demónios de Alcácer-Quibir”/”Eu vi este povo
a lutar” junta o espírito dos Lounge Lizards, o grande jazz de costela “bluesy”
swingante e uma grande intervenção, a rasgar, do contrabaixista. Que também é
pianista, em segundo plano ou à boca de cena (“Peregrinações”).
Santadreu
reaparece em “Ciclope”, no quinteto do baixista Nelson Cascais. Notável a
clareza e limpidez do fraseado, aqui mais “cool”, modulado e cantante a fogo,
bem secundado pelo trompete de Avishai Cohen, para nós, uma revelação. Cascais
assina a quase totalidade das composições e fá-lo com os pés bem assentes nos
principais capítulos da história. Jazz-modelo, clássico mas vibrante.
Na
mesma editora de Cascais (que, por sinal, gravou o seu CD em Paris), surgiu
igualmente “O Osso”, registado ao vivo num único “take” no Hot Clube de Lisboa,
por um quinteto sob a liderança do guitarrista André Fernandes. De novo a
tradição a fazer valer os seus direitos, agora com os ouvidos postos, mas não
colados, ao jazz mais fino que se fez nos anos 50 e 60, linhas de tecelagem de
novas malhas. Fernandes é um Montgomeriano por afeto, quer-nos parecer, mas,
enquanto compositor, a sua música atinge uma elaboração e um requinte extremos,
apesar da sua aparente simplicidade. O piano elétrico Fender Rhodes de Peter
Rende confere à música um colorido e delicadeza especiais, fazendo lembrar os
Nucleus, Gordon Beck e o Canterbury-jazz de Steve Miller ou de uns Gilgamesh, com
a guitarra de Fernandes a condizer. Melhor dizer um bordado. Julian Arguelles,
nos saxes tenor e soprano, sopra com descontração e boa temperatura. Bernardo
Moreira, no baixo, swinga como um safado. Ouçam-no a surfar nas notas de
“Zing”.
Um
dos grandes discos do ano tem a assinatura de Bernardo Sassetti e foi gravado
em ambiente de “verdadeira magia”, diz o próprio, na Quinta de Belgais, de
Maria João Pires. Homem de muitas músicas, fez mais uma das suas incursões pelo
jazz. Pela porta grande de Bill Evans. Em trio com Carlos Barretto (quem mais?)
no contrabaixo, e Alexandre Frazão, na bateria. Jazz voltado para dentro,
atento aos movimentos mais íntimos e secretos. Melancolia, uma despedida, um
tempo além do tempo que faz sorrir tristemente sem se saber bem porquê.
“Reflexos”, o “Sonho dos outros”, um “Olhar” e uma “Música callada” são quadros
com azul molhado de lágrimas e nuvens. “Quando volta o encanto”, pergunta-se?
Está sempre presente. E um aceno e trocadilho a Monk (“Monkais”). Paisagens
impressionistas (“Sonho dos outros” e Satie, Chopin, Debussy, de uma beleza
soluçante, sagrada, emocionante) pintadas com pontos, traços, sugestões e
luzes. “Reflexos” soa como música de um filme por filmar, pinceladas de
sentimentos em imagens de ouvir, melodia ao mesmo tempo familiar e estranha. Os
diálogos com Barretto e Frazão são para se acompanhar como um segredo –
experimente-se escutar “Cançon nº7” com as luzes apagadas e a saudade bem
acesa. Sassetti é um grande pianista, já o sabíamos. Desconhecíamos era que
estivesse e soubesse conviver tão perto e de forma tão tocante com o silêncio.
Em
transe
Para
acabar em beleza. Para acabar – porque não? – o ano, em grande, nada melhor do
que um bom desacato. E proclamamo-lo com a máxima veemência: Rodrigo Amado, Marco
Franco e Paulo Curado (todos saxofonistas), Pedro Gonçalves, no contrabaixo, e
Acácio Salero, na bateria, os cinco Lisbon Improvisation Players, sabem melhor
do que ninguém como criá-lo. Gravado ao vivo no Teatro Tivoli, em Lisboa, o
álbum dos LIP obedece a alguns dos princípios “harmolódicos” preconizados por
Ornette Coleman na enunciação do “free jazz” e da conjugação entre método e
liberdade criativa, a saber, a possibilidade de em simultâneo solar e enquadrar
esse discurso individual na matemática do coletivo. Claro que por vezes não é
fácil destrinçar a ordem do caos, a aleatoriedade da “imposição cósmica” que
determina, ao mais alto nível, a improvisação. Música independente desta
natureza é também música dependente da fortuna e do acaso. Viver do encontro do
momento implica admitir a possibilidade do desencontro. Os LIP arriscam, mesmo
assim, conversar, gritar, tropeçar e avançar. Imaginamos até onde poderiam ir,
se estimulados, por exemplo, por um Evan Parker. Não é preciso, porém, imaginar
onde já estão – num lugar de aventura mas também de conhecimento. Quando um
deles enfrenta o precipício, saltam todos. Quando um deles alcança a grande
ordem oculta sob a aparências, alcançaram todos. Lisboa, cidade de terramotos.
Carlos Barretto
Solo Pictórico
Ed. e
distri. CBTM
8|10
Mário Delgado
Filactera
Clean Feed,
distri. Trem Azul
8|10
Zé Eduardo Unit
A Jazzar no Cinema Português
Ed. e
distri. Cineclube de Faro
8|10
Nelson Cascais Quintet
Ciclope
Tone of a
pitch, distri. Trem Azul
7|10
Quinteto André Fernandes
O Osso
Tone of a
pitch, distri. Trem Azul
7|10
Bernardo Sassetti
Nocturno
Clean
Feed, distri. Trem Azul
9|10
Lisbon Improvisation Players
Lisbon Improvisation Players
Clean
Feed, distri. Trem Azul
8|10
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