JAZZ
DISCOS
PÚBLICO
30 NOVEMBRO 2002
Dave Holland, trio de Jarrett/Bley/DeJohnette e Charles Lloyd mantêm acesa chama do jazz
tradicional na ECM.
Em busca da luz
Agraciado com tudo o que é prémio, nem por isso
Dave Holland cessa de reinventar a sua música em contextos como o que agora
experimenta em “What Goes Around”, uma “big band”, não muito “big”, composta
pelo quinteto que o tem acompanhado nas últimas gravações, aumentado por oito
solistas, em metais, com destaque para o saxofonista tenor Chris Potter e o
trompetista Earl Gardner. O reportório, recortado de álbuns anteriores do
contrabaixista para a ECM (“Jumpin’ in”, “The Razor’s Edge”, “Triplicate”, “Not
for Nothin’”), juntamente com um original, “Upswing”, é um enriquecimento e um
desafio que, mais do que um reforço da coloração instrumental, propõe a criação
de um território comum onde composição e improvisação se confundem, concedendo
largo espaço de intervenção aos diversos solistas, na senda dos Mingus e
Ellington, dois dos modelos de Holland em formato XL. O jazz que por aqui passa
é jazz sem tempo nem fronteiras. Extrovertido e poderoso em “Triple Dance”,
“bluesy” e atmosférico em “Blues for C. M.” – dedicatória a Mingus na qual está
patente o papel determinante do vibrafonista Steve Nelson na economia sonora do
atual quinteto, transposta para “big band” –, introvertido e noturno em “The
razor’s edge” (ambiente cortado por uma fenomenal secção intermédia de
contraponto entre o trompete de Earl Gardner, o tenor de Potter e um fluxo
diluviano dos altos e dos trombones) e “First snow”, mas em qualquer
circunstância sustentado por um equilíbrio que potencia quer a arquitetura dos
arranjos quer a dinâmica individual de cada solista. Nelson é a cintilação
constante, Potter arrasa sempre que chamado a intervir, Gardner arranca um
timbre quente e fraseados por vezes orientalizantes (“First snow”), Holland,
contrabaixista-cantor, impõe-se por uma clareza absoluta que é também uma
certeza. Discreto a orientar, solando (dançando) por fim no derradeiro “Shadow
dance”, momento alto de jazz jogo, jazz ascensional, jazz puro prazer.
Ascese
é termo de há muito familiar no léxico de Keith Jarrett. Uma vez mais em trio
com Gary Peacock, no contrabaixo, e Jack DeJohnette, na bateria, “Always Let Me
Go”, gravado ao vivo em Tóquio, sofre precisamente de excesso de permanência no
espaço. O que nem sempre é sinónimo de elevação. Os corações do trio tocam-se
num bailado de rendas, beijos e remoques em “Hearts of space”, mas 32 minutos
de antigravidade são demasiado, sobretudo quando a tanta imponderabilidade não
sucede a descoberta de novas terras. Jarrett força, como só ele sabe, as portas
que abrem, mas também fecham, as suas obsessões pessoais, Peacock e DeJohnette
são pintores, artistas completos, capazes de descobrir a cada instante pontos
de contacto ou de rutura, de entreabrir perspetivas e imprimir curtos poemas
“haiku”.
Pena
que num disco de intimidades como este sejamos obrigados a escutar os
permanentes gemidos, arquejos e “scat” involuntário emitidos pelos três
intervenientes. Sinais de absoluta empatia mas que no recato da audição
solitária acabam por se tornar irritantes. Em “Always Let Me Go”, a música, em
ondas, está sempre a partir, mas o mesmo já não se pode dizer em relação a
chegar.
A
onda do saxofonista tenor Charles Lloyd apresenta pontos de contacto com a de
Jarrett, ou não tivessem os dois tocados juntos em grande parte da discografia
prévia do primeiro (e, já agora, também com Jack DeJohnette presente…). De
estrela aclamada pelo universo rock nos anos 60 que tocou no Fillmore West ao
lado dos Grateful Dead e dos Jefferson Airplane no Verão do Amor, até à
retirada, nos anos 70 e, finalmente, o ressurgimento, na década seguinte, nas
fileiras da ECM, Lloyd deixa atrás de si um rasto de paradoxos. Desde sempre
arreigado a uma visão mística da música, “Lift Every Voice” perdeu entretanto o
corpo e o grito libertários dos primórdios, para se concentrar em mantras como
“Hymn to the mother”, tema-chave do álbum, de pura ligação ao raga indiano.
Melancolia. Saxofone sonâmbulo. John Abercrombie que, como muitos dos
guitarristas de jazz seus contemporâneos, mostra ser capaz de a cada momento
adormecer e mesmo assim continuar a tocar de pé, desperta num “satori”
mclaughliano em “East Virginia, West Memphis”. O segundo CD, maioritariamente
preenchido por baladas, fecha com “Prayer, the crossing”, e aí uma luz mais
forte é acesa quando, no solo final, Lloyd recupera o fogo de antanho e revela
quão perto esteve do Grande Espírito onde ardia John Coltrane.
Dave Holland Big Band
What Goes
Around
9|10
Keith Jarrett, Gary Peacock, Jack DeJohnette
Always Let
Me Go
CD duplo
7|10
Charles Lloyd
Lift Every
Voice
CD duplo
8|10
Todos ECM,
distri. Dargil
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