19/09/2016

Em busca da luz [Dave Holland Big Band + Keith Jarrett, Gary Peacock, Jack DeJohnette + Charles Lloyd]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 30 NOVEMBRO 2002

Dave Holland, trio de Jarrett/Bley/DeJohnette e Charles Lloyd mantêm acesa chama do jazz tradicional na ECM.

Em busca da luz

Agraciado com tudo o que é prémio, nem por isso Dave Holland cessa de reinventar a sua música em contextos como o que agora experimenta em “What Goes Around”, uma “big band”, não muito “big”, composta pelo quinteto que o tem acompanhado nas últimas gravações, aumentado por oito solistas, em metais, com destaque para o saxofonista tenor Chris Potter e o trompetista Earl Gardner. O reportório, recortado de álbuns anteriores do contrabaixista para a ECM (“Jumpin’ in”, “The Razor’s Edge”, “Triplicate”, “Not for Nothin’”), juntamente com um original, “Upswing”, é um enriquecimento e um desafio que, mais do que um reforço da coloração instrumental, propõe a criação de um território comum onde composição e improvisação se confundem, concedendo largo espaço de intervenção aos diversos solistas, na senda dos Mingus e Ellington, dois dos modelos de Holland em formato XL. O jazz que por aqui passa é jazz sem tempo nem fronteiras. Extrovertido e poderoso em “Triple Dance”, “bluesy” e atmosférico em “Blues for C. M.” – dedicatória a Mingus na qual está patente o papel determinante do vibrafonista Steve Nelson na economia sonora do atual quinteto, transposta para “big band” –, introvertido e noturno em “The razor’s edge” (ambiente cortado por uma fenomenal secção intermédia de contraponto entre o trompete de Earl Gardner, o tenor de Potter e um fluxo diluviano dos altos e dos trombones) e “First snow”, mas em qualquer circunstância sustentado por um equilíbrio que potencia quer a arquitetura dos arranjos quer a dinâmica individual de cada solista. Nelson é a cintilação constante, Potter arrasa sempre que chamado a intervir, Gardner arranca um timbre quente e fraseados por vezes orientalizantes (“First snow”), Holland, contrabaixista-cantor, impõe-se por uma clareza absoluta que é também uma certeza. Discreto a orientar, solando (dançando) por fim no derradeiro “Shadow dance”, momento alto de jazz jogo, jazz ascensional, jazz puro prazer.
                Ascese é termo de há muito familiar no léxico de Keith Jarrett. Uma vez mais em trio com Gary Peacock, no contrabaixo, e Jack DeJohnette, na bateria, “Always Let Me Go”, gravado ao vivo em Tóquio, sofre precisamente de excesso de permanência no espaço. O que nem sempre é sinónimo de elevação. Os corações do trio tocam-se num bailado de rendas, beijos e remoques em “Hearts of space”, mas 32 minutos de antigravidade são demasiado, sobretudo quando a tanta imponderabilidade não sucede a descoberta de novas terras. Jarrett força, como só ele sabe, as portas que abrem, mas também fecham, as suas obsessões pessoais, Peacock e DeJohnette são pintores, artistas completos, capazes de descobrir a cada instante pontos de contacto ou de rutura, de entreabrir perspetivas e imprimir curtos poemas “haiku”.
                Pena que num disco de intimidades como este sejamos obrigados a escutar os permanentes gemidos, arquejos e “scat” involuntário emitidos pelos três intervenientes. Sinais de absoluta empatia mas que no recato da audição solitária acabam por se tornar irritantes. Em “Always Let Me Go”, a música, em ondas, está sempre a partir, mas o mesmo já não se pode dizer em relação a chegar.
                A onda do saxofonista tenor Charles Lloyd apresenta pontos de contacto com a de Jarrett, ou não tivessem os dois tocados juntos em grande parte da discografia prévia do primeiro (e, já agora, também com Jack DeJohnette presente…). De estrela aclamada pelo universo rock nos anos 60 que tocou no Fillmore West ao lado dos Grateful Dead e dos Jefferson Airplane no Verão do Amor, até à retirada, nos anos 70 e, finalmente, o ressurgimento, na década seguinte, nas fileiras da ECM, Lloyd deixa atrás de si um rasto de paradoxos. Desde sempre arreigado a uma visão mística da música, “Lift Every Voice” perdeu entretanto o corpo e o grito libertários dos primórdios, para se concentrar em mantras como “Hymn to the mother”, tema-chave do álbum, de pura ligação ao raga indiano. Melancolia. Saxofone sonâmbulo. John Abercrombie que, como muitos dos guitarristas de jazz seus contemporâneos, mostra ser capaz de a cada momento adormecer e mesmo assim continuar a tocar de pé, desperta num “satori” mclaughliano em “East Virginia, West Memphis”. O segundo CD, maioritariamente preenchido por baladas, fecha com “Prayer, the crossing”, e aí uma luz mais forte é acesa quando, no solo final, Lloyd recupera o fogo de antanho e revela quão perto esteve do Grande Espírito onde ardia John Coltrane.

Dave Holland Big Band
What Goes Around
9|10

Keith Jarrett, Gary Peacock, Jack DeJohnette
Always Let Me Go
CD duplo
7|10

Charles Lloyd
Lift Every Voice
CD duplo
8|10


Todos ECM, distri. Dargil

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