04/09/2016

Peter Gabriel - Up

Sons
20 Setembro 2002

O homem esquizóide do século XXI despertou. Em “Up” Peter Gabriel volta a emitir sinais de vida e reaprendeu a fazer esgares. Eis como soa a cabeça dele

a cabeça dele soa assim

PETER GABRIEL
Up
Virgin, distri. EMI-VC
7|10

“Up”. Como nos anteriores “So” e “Us”, a exiguidade do título permite encher o saco com conjeturas. Só que enquanto “So” era uma justificação pouco convicta e “Us” uma tentativa de reconciliação mal sucedida, “Up” soa com a urgência de uma campainha de despertador. Toca a levantar, parece dizer. Gabriel limpou as ramelas e reabriu as asas. Já não de anjo, mas de corvo.
            Nem sempre foi assim. Apesar do apelido de anjo, teve fama, até aos primórdios dos anos 80, de diabrete. Nos Genesis, disfarçado de rã com acne (como se apresentava nos concertos durante a fase mais teatral do grupo, entre 1970 e 1973) ou de Rael alucinado (personagem que encarnou no último álbum gravado com a banda, “The Lamb Lies Down on Brodway”, de 1974), e já a solo, nos primeiros quatro discos, onde ensaiou, a vários níveis, a disformidade e a alienação.
            Embalado no berço da Inglaterra do psicadelismo e do rock progressivo do final dos anos 60, juntou o universo da fábula Carrolliana a uma crueldade própria dos surrealistas. Mestre dos disfarces e da maquilhagem psicológica (como Bowie, ainda que o seu Rael seja mais complexo que Ziggy Stardust ou o Thin White Duke…) Gabriel colou (ainda como Bowie) a psicose ao entretenimento, a beleza à monstruosidade, cultivando uma ambiguidade que lhe permitiu percorrer, incólume, duas décadas de música popular.
            “The musical box”, do terceiro álbum dos Genesis (“Nursery Cryme”), é o exemplo acabado do ambiente de ópio, ocultismo e mistério que Gabriel emprestava aos Genesis, com as suas máscaras, histórias de crianças perversas e demónios vitorianos, e as vocalizações de Arlequim. Já sem o ferrete do Progressivo, enfrentou os anos 80 com o olhar renovado de um “intruder” (“The intruder”, tema de abertura do álbum a solo nº 3), observador, vítima e carrasco de uma década que foi tanto de trevas como de revolução.
            Eram os anos do néon, da descoberta do sampler (foi dos primeiros a usar em disco um “Fairlight”) e da disseminação da “world music” (causou furor a restrição das percussões, limitada aos tambores, no terceiro disco). Em cada um dos primeiros quatro trabalhos a solo, todos intitulados “Peter Gabriel”, as capas figuravam as várias etapas de uma metamorfose centrada no rosto. Da solidão, ainda romântica, personificada pelo homem triste e isolado do mundo, encolhido no interior de um automóvel (disco de estreia), ao instantâneo vídeo do volume quatro que se diria recortado de uma experiência tecnobiológica mal sucedida de Cronenberg, passando pelo esfacelamento da capa/vitrina em “trompe l’oeil” do volume 2 e a corrosão facial do volume 3, opera-se a dissolução de uma imagem, enquanto superação e aniquilação da ópera encenada com os Genesis. O rosto de “So” é já o de um homem normal.
            Mas a normalidade coincidiu com o início da decadência. Em “So” a música soa como elemento secundário. O músico cedia o lugar ao designer de jogos de computador (“Xplora” e “Eve” são marcos na evolução conceptual deste tipo de entretenimento eletrónico), ao retocador das músicas do mundo, criador do projeto editorial Real World, e ao visionário que almejava a edificação da Disneylândia artística do futuro – um gigantesco parque temático servido pelas mais modernas tecnologias, idealizado com Laurie Anderson.
            Consumada a reconversão, a máscara tombou, por fim. And “So”… acontece aos melhores, diz-se… Peter Gabriel descobriu novos interesses. As viagens pelos recônditos da mente foram trocadas por viagens de iate na companhia de atraentes top models como Claudia Schiffer. Ninguém, nem os anjos, muito menos as rãs que se transformam em príncipes encantados, escapa ao envelhecimento. Porém, se a música claudicou, divagando entre “So” e “Us”, com passagem pelo exotismo das bandas sonoras de “Birdy” e “A Última Tentação de Cristo”, de Scorsese, foi curiosamente durante este período que demonstrou, uma vez mais, por que razão nunca chegou a ausentar-se verdadeiramente do grupo dos inovadores. É que se as canções eram vulgares, o formato visual que as acompanhava, como em “Sledgehammer”, ganhavam uma originalidade sem precedentes no mundo dos videoclips, ao fazer recurso a inusitadas técnicas de animação e de colagem.

            arrancado à cama. Estavam as coisas neste pé, com os fãs já resignados a contentar-se com o melhor Gabriel confinado às consolas de jogos, quando o novo álbum, “Up”, sacudiu o entorpecimento e chamou de novo a atenção para um músico a quem estava prestes a ser retirado o benefício da dúvida. O ex-Genesis não estava, afinal, morto, mas adormecido, ou em hibernação. “Up” arrancou-o da cama. Não é o Gabriel das leviandades e das paixões plastificadas, dos abraços dengosos a Kate Bush e do fazedor de sopas com tempero do quarto mundo, mas o anjo negro que retoma o jogo das escondidas com os seus e com os nossos medos.
            O álbum, composto por dez temas dos quais apenas dois não ultrapassam os seis minutos de duração, começa com “Darkness”, tão escuro e ominoso como uma refrega de personalidades múltiplas corroídas por sonoridades industriais. Termina com “Signal to noise”, projeção apocalíptica de um presente em que a perda de referências (os sinais) equivale à predominância do ruído e consequente bloqueamento dos canais de comunicação. Como se fosse, afinal, a continuação de um aviso feito no disco de estreia: “Here comes the flood”.
            Os sinais de estática que inundam os receptores do cérebro aumentaram desde então de potência, até se tornarem ensurdecedores. O dilúvio aumentou de intensidade, tornando inúteis os guarda-chuvas e as gabardinas. Em última análise, terá sido este aumento de precipitação acompanhado do baque das gotas contra o crâneo que fizeram Gabriel olhar de novo para cima com os olhos espantados de quem reencontrou um mundo ainda mais sujo e profanado do que antes, e a descrever numa da canções do álbum, “My head sounds like this”, tema surpreendentemente evocativo dos Genesis, as circunvalações de um percurso feito de convulsões. Rael tornou-se real. Numa reconciliação com o passado e na forma como incorporou, sem sofreguidão, como em “The Barry Williams show”, algumas tendências do “groove” contemporâneo e, em “More than this”, a massa com que cozem os “hits”.
            Ou, como o seu amigo Robert Fripp (com quem colaborou em vários discos) profetizara, ele próprio vestiu a pele do “21st century schizoid man”. Hoje em dia quem é que se impressiona com um homem vestido de rã?


“Up” está disponível no dia 23

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