Sons
20
Setembro 2002
O
homem esquizóide do século XXI despertou. Em “Up” Peter Gabriel volta a emitir
sinais de vida e reaprendeu a fazer esgares. Eis como soa a cabeça dele
a cabeça dele soa assim
PETER GABRIEL
Up
Virgin, distri. EMI-VC
7|10
“Up”. Como nos anteriores “So” e “Us”, a
exiguidade do título permite encher o saco com conjeturas. Só que enquanto “So”
era uma justificação pouco convicta e “Us” uma tentativa de reconciliação mal
sucedida, “Up” soa com a urgência de uma campainha de despertador. Toca a
levantar, parece dizer. Gabriel limpou as ramelas e reabriu as asas. Já não de
anjo, mas de corvo.
Nem
sempre foi assim. Apesar do apelido de anjo, teve fama, até aos primórdios dos
anos 80, de diabrete. Nos Genesis, disfarçado de rã com acne (como se
apresentava nos concertos durante a fase mais teatral do grupo, entre 1970 e
1973) ou de Rael alucinado (personagem que encarnou no último álbum gravado com
a banda, “The Lamb Lies Down on Brodway”, de 1974), e já a solo, nos primeiros
quatro discos, onde ensaiou, a vários níveis, a disformidade e a alienação.
Embalado
no berço da Inglaterra do psicadelismo e do rock progressivo do final dos anos
60, juntou o universo da fábula Carrolliana a uma crueldade própria dos
surrealistas. Mestre dos disfarces e da maquilhagem psicológica (como Bowie,
ainda que o seu Rael seja mais complexo que Ziggy Stardust ou o Thin White
Duke…) Gabriel colou (ainda como Bowie) a psicose ao entretenimento, a beleza à
monstruosidade, cultivando uma ambiguidade que lhe permitiu percorrer,
incólume, duas décadas de música popular.
“The
musical box”, do terceiro álbum dos Genesis (“Nursery Cryme”), é o exemplo
acabado do ambiente de ópio, ocultismo e mistério que Gabriel emprestava aos
Genesis, com as suas máscaras, histórias de crianças perversas e demónios
vitorianos, e as vocalizações de Arlequim. Já sem o ferrete do Progressivo,
enfrentou os anos 80 com o olhar renovado de um “intruder” (“The intruder”,
tema de abertura do álbum a solo nº 3), observador, vítima e carrasco de uma
década que foi tanto de trevas como de revolução.
Eram
os anos do néon, da descoberta do sampler (foi dos primeiros a usar em disco um
“Fairlight”) e da disseminação da “world music” (causou furor a restrição das
percussões, limitada aos tambores, no terceiro disco). Em cada um dos primeiros
quatro trabalhos a solo, todos intitulados “Peter Gabriel”, as capas figuravam
as várias etapas de uma metamorfose centrada no rosto. Da solidão, ainda
romântica, personificada pelo homem triste e isolado do mundo, encolhido no
interior de um automóvel (disco de estreia), ao instantâneo vídeo do volume
quatro que se diria recortado de uma experiência tecnobiológica mal sucedida de
Cronenberg, passando pelo esfacelamento da capa/vitrina em “trompe l’oeil” do
volume 2 e a corrosão facial do volume 3, opera-se a dissolução de uma imagem,
enquanto superação e aniquilação da ópera encenada com os Genesis. O rosto de
“So” é já o de um homem normal.
Mas
a normalidade coincidiu com o início da decadência. Em “So” a música soa como
elemento secundário. O músico cedia o lugar ao designer de jogos de computador
(“Xplora” e “Eve” são marcos na evolução conceptual deste tipo de
entretenimento eletrónico), ao retocador das músicas do mundo, criador do
projeto editorial Real World, e ao visionário que almejava a edificação da
Disneylândia artística do futuro – um gigantesco parque temático servido pelas
mais modernas tecnologias, idealizado com Laurie Anderson.
Consumada
a reconversão, a máscara tombou, por fim. And “So”… acontece aos melhores,
diz-se… Peter Gabriel descobriu novos interesses. As viagens pelos recônditos
da mente foram trocadas por viagens de iate na companhia de atraentes top
models como Claudia Schiffer. Ninguém, nem os anjos, muito menos as rãs que se
transformam em príncipes encantados, escapa ao envelhecimento. Porém, se a
música claudicou, divagando entre “So” e “Us”, com passagem pelo exotismo das
bandas sonoras de “Birdy” e “A Última Tentação de Cristo”, de Scorsese, foi
curiosamente durante este período que demonstrou, uma vez mais, por que razão
nunca chegou a ausentar-se verdadeiramente do grupo dos inovadores. É que se as
canções eram vulgares, o formato visual que as acompanhava, como em
“Sledgehammer”, ganhavam uma originalidade sem precedentes no mundo dos
videoclips, ao fazer recurso a inusitadas técnicas de animação e de colagem.
arrancado
à cama. Estavam as coisas neste pé, com os fãs já resignados a contentar-se
com o melhor Gabriel confinado às consolas de jogos, quando o novo álbum, “Up”,
sacudiu o entorpecimento e chamou de novo a atenção para um músico a quem
estava prestes a ser retirado o benefício da dúvida. O ex-Genesis não estava,
afinal, morto, mas adormecido, ou em hibernação. “Up” arrancou-o da cama. Não é
o Gabriel das leviandades e das paixões plastificadas, dos abraços dengosos a
Kate Bush e do fazedor de sopas com tempero do quarto mundo, mas o anjo negro
que retoma o jogo das escondidas com os seus e com os nossos medos.
O
álbum, composto por dez temas dos quais apenas dois não ultrapassam os seis
minutos de duração, começa com “Darkness”, tão escuro e ominoso como uma
refrega de personalidades múltiplas corroídas por sonoridades industriais.
Termina com “Signal to noise”, projeção apocalíptica de um presente em que a
perda de referências (os sinais) equivale à predominância do ruído e
consequente bloqueamento dos canais de comunicação. Como se fosse, afinal, a
continuação de um aviso feito no disco de estreia: “Here comes the flood”.
Os
sinais de estática que inundam os receptores do cérebro aumentaram desde então
de potência, até se tornarem ensurdecedores. O dilúvio aumentou de intensidade,
tornando inúteis os guarda-chuvas e as gabardinas. Em última análise, terá sido
este aumento de precipitação acompanhado do baque das gotas contra o crâneo que
fizeram Gabriel olhar de novo para cima com os olhos espantados de quem
reencontrou um mundo ainda mais sujo e profanado do que antes, e a descrever
numa da canções do álbum, “My head sounds like this”, tema surpreendentemente
evocativo dos Genesis, as circunvalações de um percurso feito de convulsões.
Rael tornou-se real. Numa reconciliação com o passado e na forma como
incorporou, sem sofreguidão, como em “The Barry Williams show”, algumas
tendências do “groove” contemporâneo e, em “More than this”, a massa com que
cozem os “hits”.
Ou,
como o seu amigo Robert Fripp (com quem colaborou em vários discos)
profetizara, ele próprio vestiu a pele do “21st century schizoid man”. Hoje em
dia quem é que se impressiona com um homem vestido de rã?
“Up” está disponível no dia 23
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