20/09/2016

Os desejos da casta Susana [Suzanne Vega]

SUZANNE VEGA ATUA NO PORTO E EM LISBOA

OS DESEJOS DA CASTA SUSANA

Vega é nome de estrela. Ela evita sê-lo. "Pálida", "etérea" e "transparente", como já lhe chamaram, Suzanne Vega continua a observar o mundo através de um prisma aguçado por lucidez em demasia e alguma insegurança. "Há uma parte de mim que sente que talvez tenha feito alguma coisa errada para me ter tornado tão popular", garante, com uma ponta de ironia. Volta a Portugal na próxima semana. Para nos oferecer os seus objetos de desejo.

PARA ESTA cantora norte-americana de 40 anos que professa a doutrina budista e admira Simone de Beauvoir mas que afirma adorar Nova Iorque, porque o medo e a violência que varrem a cidade lhe provocam excitação, o sucesso chegou devagar mas com firmeza. Cinco álbuns foram mais que suficientes para a colocar num dos pedestais da música popular deste século. Provavelmente ao lado de Leonard Cohen, a sua alma gémea.
            Hoje, Suzanne Vega, quer queira quer não, é uma estrela. Os seus fãs assediam-na diariamente com centenas de cartas. De dois géneros diferentes, representativas do tipo de emoções que a sua personalidade desencadeia: as que começam por "I want to fuck you" e as que começam por "I want to kill you".
            O brilho de Suzanne Vega é anunciado em 1987, com o sucesso, à escala planetária, de "Luka", uma canção do seu segundo álbum, "Solitude Standing", sobre um rapaz submetido a maus tratos pelos pais. Ao mesmo tempo a jovem Suzanne, filha de pais incógnitos, procura o seu pai biológico que encontra, finalmente, na pequena cidade de Newport Beach, na Califórnia. Imagina-o como todas as crianças imaginam os seus pais: perfeito.
            A realidade, porém, mostra-se diferente. O pai é um homem gordo, de bochechas salientes. "Impossível chamar-lhe papá", desabafa. Prefere imaginar como pai um tio, que vê numa fotografia. "Um indivíduo alto, pálido e magro" que morrera anos antes, alcoolizado. Suzanne Vega fixa-se nessa imagem e dedica-lhe uma canção, "Blood sings". "Tinha os mesmos lábios que eu", recorda. É o princípio de uma visão em que a realidade se confunde com o sonho, o voltar da primeira página do seu "Book of dreams" particular. Anos depois uma mulher envia-lhe um pacote com aparas de unhas, cabelos e uma amostra de sangue, garantindo ser a sua mãe biológica. Suzanne entra em paranoia. "Agora já não me sinto segura de mim. A prova é que há cada vez mais médicos nas minhas canções. Antes eram soldados". A febre sobe aos "99,9º F", temperatura do corpo humano ligeiramente acima da normal que dá título ao seu álbum de 1992.

“Sem refrão nem melodia”

            Filha adotiva de uma norte-americana e de um porto-riquenho, Suzanne Vega vive a sua juventude no Harlém hispânico. Aos 9 anos descobre que aqueles não são os seus pais verdadeiros. Aceita com dificuldade a ideia de ser branca. Começa a compor canções aos 14 anos. Sobre temas incómodos como o isolamento, a violência e a amputação, mas em que o distanciamento e o simbolismo estão presentes. A revolta e o sonho moldam a sua personalidade musical. Assiste pela primeira vez a um concerto de rock, de Lou Reed, com quem aprende que é possível compor uma canção "sem refrão nem melodia", características que considera "limitativas".
            Quando "Luka" alcança o êxito que se conhece Suzanne opõe-se com tenacidade ao seu aproveitamento em campanhas humanitárias: "Seria oportunismo". Em vez disso a cantora procede como uma pintora: "Tento dar aos sentimentos das pessoas forma, cor e textura".
            Após um período de rodagem nos clubes folk de Greenwich Village, grava em 1985, com Lenny Kaye (ex-guitarrista de Patti Smith) o seu álbum de estreia, "Suzanne Vega", envergando ainda as vestimentas militantes das cantoras folk de protesto dos anos 60, como Joan Baez, Joni Mitchell, Judy Collins, Laura Nyro ou Melanie. Mas na sua voz percebe-se já uma combinação original de pureza, calor e inquietação. Deste álbum sobressai a primeira de grandes canções, "Marlene on the wall".
            "Solitude Standing", o álbum seguinte, gravado dois anos mais tarde, inclui "Luka" e abre-lhe as portas para outros voos. As suas canções estendem-se ao cinema ("Left of center" é incluído na banda sonora de "Pretty in Pink", de Howard Deutch) e imiscuem-se no minimalismo de Philip Glass, no álbum mais comercial deste compositor, "Songs from Liquid Days".
            "Book of dreams" e "Tom's Dinner" (um bar situado na rua 102, na Broadway, que Vega costuma frequentar) fazem parte do grupo das canções arquetípicas deste álbum. A última delas acabaria por se tornar num "hit", após ter sido samplada pela banda "no wave" DNA. Em 1991 seria editado um álbum só de versões deste tema, "Tom's Album", pelos R. E. M., Nikki Sudden e Beth Watson, entre outros.
            "Days of Open Hand" (1990), "99,9º F" (1992, produzido por Mitchell Froom, com quem casou) e "Nine Objects of Desire" (1996) fazem a transição da menina mal comportada dos primórdios para uma observadora atenta e concentrada no envolvimento instrumental das suas canções. Se "Days of Open Hand" ilustra este crescente interesse pela forma, "99,9º F" representa a primeira incursão sem entraves nos territórios da música eletrónica, enquanto "Nine Objects of Desire" se pauta por um retorno a formas de composição mais depuradas e pela assunção da bossa nova como uma das influências recorrentes na sua música.
            Nos últimos dois anos o nascimento de Ruby alterou a sua vida. O corpo – "O meu corpo mudou e afetou a minha voz" – e o espírito. Como canta em "World before Columbus", que dedica à filha: "Se o teu amor me fosse tirado, mesmo a luz mais brilhante se tornaria difusa".
            Suzanne Vega atuou em Portugal, em Cascais, em Dezembro de 1990. Poemas de infância e letras de canções escritas antes da gravação do seu primeiro álbum foram editadas há cinco anos no livro "Murmúrios Urgentes" (coleção Rei Lagarto, ed. Assírio & Alvim), com tradução de Fátima Castro Silva. O álbum mais recente, a coletânea "The Best of Suzanne Vega, Tried and True", concretiza uma ideia antiga. Como ela diz: "Poderia perfeitamente pegar em todas as minhas canções e voltar a editá-las de forma diferente, para que as pessoas as pudessem experimentar também de maneiras diferentes".

sexta-feira, 11 Junho 1999

ARTES & ÓCIOS

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