ARTES sexta-feira, 10 Março 2000
ERA UMA VEZ
UMA MENINA LOURA E RELIGIOSA QUE FOI PARA A CAMA COM O LOBO MAU. A MENINA É
MARIANNE FAITHFULL. O LOBO MAU É MICK JAGGER. ELE PARTIU-LHE O CORAÇÃO. ELA
DESCEU AO INFERNO PARA APANHAR OS CACOS. MARIANNE RELEMBRA A SUA HISTÓRIA EM
“DREAMING MY DREAMS”, DOCUMENTÁRIO QUE A ARTE VAI EXIBIR.
MARIANNE
FAITHFULL AMANHÃ NO CANAL ARTE, ÀS 23H20
CORAÇÃO
PARTIDO
CRESCEU ENVOLTA numa aura de santidade, num colégio de freiras, a
menina loura de ar cândido cujo apelido não podia ser mais apropriado:
Faithfull, “cheia de fé”. Marianne Faithfull. Nome de santa. Mas muito cedo um
discípulo do diabo se encarregou de lhe tirar as ilusões. Com Mick Jagger,
“joker” dos Rolling Stones, dos quais se tornou “groupie” nos anos 60,
Faithfull desceu aos abismos da sexualidade e da droga. Uma tentativa frustrada
de suicídio marcou o fim deste ciclo de degradação. Das cinzas renasceu outra
mulher, com o corpo e a voz devastado pelos excessos. Só que agora, no lugar da
adolescente pecadora, estava uma artista.
É esta
acidentada carreira que, na voz da própria, o documentário de Michael Collins,
“Dreaming My Dreams”, vai contar, amanhã, no canal Arte, às 23h20.
Marianne
Faithfull nasce em Hampstead, Londres, poucos dias a seguir ao Natal, a 29 de
Dezembro de 1946. Até nada data de nascimento tem Deus por perto. O pai é
professor universitário e a mãe uma baronesa austríaca. Faz os estudos na St.
Joseph’s Convent School, em Reading. Contudo, é numa festa, e não numa igreja,
que, através do seu marido, o pintor John Dunbar, conhece aquele que irá ser o
seu primeiro produtor artístico, Andrew Loog Oldham, que a introduz no círculo
de relações dos Stones, com o estatuto de “groupie”. Tem então 17 anos.
Este tipo de
relações inclui sexo com os elementos da banda e, principalmente, com Mick
Jagger, com quem manterá uma relação de três anos onde, a par das emoções
fortes, a droga circula com não menos intensidade. Curiosamente, não é Jagger
mas Keith Richards quem, segunda conta na sua autobiografia, editada em 1994,
lhe proporciona na cama “a melhor noite de toda a sua vida”. Sobre Brian Jones,
com quem também partilhou o leito, diz que era “um tipo fraco, absolutamente
incapaz de ter uma verdadeira relação sexual”.
Como
pagamento de serviços, o Stones oferecem a esta noviça cega pelo brilho do
mestre, uma canção que se torna um “hit” em 1964: “As tears go by”. Os anos 60,
o seu arco-íris e o pote de tormentos depositado numa das suas extremidades,
ficam para sempre encerrados neste frasco de trágica magia. Apesar da vida
pouco recomendável que leva, a jovem Marianne não esquece a sua educação
religiosa. Só que o ácido, a morfina e a heroína modificam-lhe as dificuldades
de discernimento. Quando encontra Bob Dylan pela primeira vez vê nele “Deus em
pessoa”. Coerente com a sua personalidade de mística radical vai para a cama
com deus, o qual, deliciado, lhe dedica um poema. Consumada a união com o
demiurgo de “Blowin’ in the wind”, Marianne admite, porém, com alguma lucidez,
que, nesta altura era com toda a certeza a “maior das concubinas com poder”.
Ainda em conformidade com esta maneira de ser, a jovem Marianne participa em
1967 na gravação de “All you need is love”, dos Beatles.
A “trip” dos
“sixties” arrasta a jovem Marianne para o quarto dos papões. Quando o sonho
termina ela não consegue sair de lá, nem sequer descerrar as pálpebras, incapaz
de se adaptar, desfeita pela violência do choque. Ficara aprisionada nas
masmorras da toxicodependência e de uma relação desfeita com o seu antigo herói.
É uma
Marianne Faithfull paradoxal que encontramos na sua discografia até 1967. Aos
excessos que acompanhavam o dia a dia da sua relação com o vocalista dos Stones
corresponde uma música inocente influenciada pelo “flower power” e pela folk,
em álbuns como “Come my Way”, “Marianne Faithfull”, “Go away from my World”,
todos de 1965, “Faithfull Forever”, “North Country Girl”, ambos de 1966, e
“Loveinamist”, de 1967, onde se podem encontrar versões de temas de pioneiros
da folk-rock como Donovan, Bert Jansch e Tim Hardin. Mas o lado negro está
sempre presente e é a mesma Marianne, que nos seus próprios discos é toda
doçura, quem escreve para os Stones a letra de “Sister morphine”.
A procura
constante de novas experiências leva ainda a cantora a fazer teatro, nas “Três
Irmãs” de Tchekov, e cinema, em “Girl on a Motorcycle”, ao lado de Alain Delon,
e “Lucifer’s Rising”, de Kenneth Anger, um filme de temática satânica que
combinava bem com o estilo de vida desregrado que levava.
O outro
filme, da sua vida, termina entretanto com consequências bem mais trágicas. Ao
rompimento com Jagger, Faithfull reage com uma tentativa frustrada de suicídio.
A sua relação com a heroína e a morfina, essa mantém-se. Marianne desaparece da
vida artística, como se a sua existência só tivesse feito sentido, até aí,
devido à proximidade dos Stones. Marianne Faithfull, a “groupie” que não
aguentou a pressão. Assunto encerrado.
Boulevard of
broken dreams
Não era
assim. Era verdade que a adolescente loura de olhos azuis já não existia. Em
seu lugar surgira uma sobrevivente, uma mulher marcada por um passado de dor e
desilusão mas que, contra todas as aparências, conseguira resistir, renascendo
para a música com uma vida inteira de histórias para contar. Toda a fase
seguinte da sua carreira é um lamber de cicatrizes, um exorcismo e um ajuste de
contas com o passado.
Depois de um
interregno de dez anos Marianne Faithfull regressa com o álbum “Dreamin’ my
Dreams”, de 1976. Em registo country (o título-tema é uma canção de Waylon Jennings),
acompanhada pelos Grease Band. Em 1979 edita o álbum que a reconcilia com a
crítica, “Broken English”, um trabalho de pop embalada em sintetizadores e
batidas de dança que inclui uma inesquecível versão de “The Ballad of Lucy
Jordan” de Shel Silverstein. Em 1980, depois de uma cura de desintoxicação, diz
adeus às drogas. Vai viver para a Irlanda onde encontra as suas raízes folk,
presentes em “Dangerous Acquaintances” (1981) e “A Child’s Adventure” (1983).
A terceira e,
até ao presente, última metamorfose ocorre com o álbum seguinte, “Strange
Weather” (1987), a sua obra-prima. Um álbum onde a voz, agora cavernosa, é
esculpida pelo tempo, em veludo e fumo, luzes e trevas. Onde o jazz e a
tradição do cabaré se unem para dar maior relevo a canções que vão de uma
versão assombrosa do standard “Boulevard of broken dreams” à revisitação
cicatrizada de “As tears go by”. Volta a usar a eletrónica em “A Secret Life”,
espécie de capítulo segundo de “Broken English”, para em “20th Century Blues”,
gravado ao vivo em 1966 em Paris, sedimentar a pose de diva de cabaré, com
canções de Kurt Weill e Noël Coward, assumindo por completo esta sua nova
identidade em “The Seven Deadly Sins” (1998), inteiramente preenchido com
versões ao vivo de temas da ópera “Os Sete Pecados Mortais”, de Weill. Atuou ao
vivo em Portugal, em Julho de 1992, no Coliseu dos Recreios em Lisboa.
Da sua
autobiografia, intitulada “Faithfull”, para além do relato dos episódios
sexuais com alguns dos seus muitos parceiros e de descrições detalhadas de
“viagens” de LSD, retenha-se a seta de veneno e de despeito lançada ao
ex-amante, Mick Jagger, acusando-o de ser o “diabólico” responsável pela
dissolução dos Beatles. Também lá diz que suspeitou sempre que Mick fosse
bissexual…
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