08/09/2016

O diabo que os carregue [The Rolling Stones]

Sons
15 Novembro 2002

o diabo que os carregue

Levou os Stones ao colo na escalada que colocou uma banda de “rhythm ‘n’ blues” no topo da montanha. Três clássicos: “Aftermath”, “Between the Buttons” e “Beggars Banquet” estão aí.

Já cá estão. Já cá cantam. Para ouvir e magoar. The Rolling Stones, as tais reedições de luxo, com remasterizações a preceito e embalagem digipak, da discografia dos anos 60 e início dos 70 da “maior banda de rock ‘n’ roll do planeta”, estão disponíveis no mercado português.
Dezanove objetos de prazer. E de delito. Os primeiros exemplares, em número limitado, podem ser lidos em formato áudio normal e super áudio e incluem um certificado de garantia. Do pacote fazem parte as versões inglesas de “Out of Our Heads”, “Aftermath” e “Between the Buttons”, pela primeira vez disponíveis em CD, enquanto “Metamorphosis” tem estreia absoluta no formato digital. A coletânea americana “More Hot Rocks (Big Hits & Fazed Cookies”) inclui temas de bónus. Embora a apresentação gráfica em digipak deixe algo a desejar (fotos baças e sem contraste; em “Their Satanic Majesties Request”, a fotografia original em 3D foi substituída por um falso holograma, com o enquadramento truncado), este é o trabalho mais exaustivo até à data sobre a “maior banda de rock ‘n’ roll do sistema solar”.
Antes de mais, a lista da pedreira: “England’s Newest Hit Makers: The Rolling Stones” (1964, ed. exclus. EUA), “12×5” (1964, EUA), “The Rolling Stones Now!” (1965, EUA), “December’s Children” (1965, EUA), “Out of Our Heads” (1965, Inglaterra/EUA), “Aftermath” (1966, ed. exclus. Inglaterra/EUA), “Got Live if you Want it” (1966, EUA), “Between the Buttons” (1967, Inglaterra/EUA), “Their Satanic Majesties Request” (1967, Inglaterra), “Flowers” (1967, Inglaterra), “Beggars Banquet” (1968, Inglaterra), “Let it Bleed” (1969, Inglaterra), “Get Yer Ya-Ya’s out” (1970, Inglaterra). Ainda as coletâneas inglesas “Big Hits – High Tide and Green Grass” (1966) e “Through the Past Darkly” (1969) e as americanas (ambas em duplo CD) “Hot Rocks, 1964-1971” (1972) e “More Hot Rocks (Big Hits & Fazed Cookies)” (1972). Quem quiser optar apenas pelas canções mais conhecidas, pode ficar-se pela caixa de 3 CD, “The Rolling Stones Singles Collection: The London Years” (1989). Todos com distribuição pela Universal.
É muito e sabe a muito, muitas vezes a fel, a música da “maior banda de rock ‘n’ roll da galáxia”. E, no entanto, foram os Beatles, e não os Stones, que criaram raízes no rock ‘n’ roll. Os Stones foram mais atrás e pagaram pela ousadia. Aos “blues”. À fogueira primordial da música negra. Por isso se diz, se sente, se ouve, como é “branca” a música dos Beatles e “negra” a dos Stones. Em mais do que um aspeto. Deixemos, porém, e de uma vez por todas, os “fabulous four” em paz. A história dos Rolling Stones é outra e, por norma, troveja.
Originalmente denominados The Rollin’ Stones, o grupo operou desde o início a partir de um núcleo central formado por Mick Jagger e Keith Richards. Os anjos exterminadores. Brian Jones chegaria mais tarde trazendo consigo as jóias mais belas e envenenadas. Dizíamos os “blues”. E assim era quando, em 1962, um dos mais notáveis “bluesmen” ingleses da época, Alexis Korner, os apadrinhou no primeiro concerto, no mítico Marquee Club, de Londres. Não foram bem recebidos. Acusaram-nos de “impuros”. No fundo, batia certo. Quando, mais ou menos na mesma altura, os… bem… os outros quatro, vestiam fatinho completo nas suas aparições na TV, os Stones recusavam-se a enfiar a imagem de meninos bem comportados. Andrew Loog Oldham, o empresário que os arrancou do anonimato, resumiu com bastante acutilância o que os Stones projetavam, não só como imagem mas como estilo de vida: “Música e Sexo”. Mais um naco de teoria: “o facto de apenas em alguns meses a Inglaterra necessitar de um oposto ao que os B*****S faziam. Algo instintivo. Podia convidar-se os B*****S para tomar chá, não se podia convidar os Stones.

CORAÇÃO DE PEDRA
Os primeiros álbuns, é forçoso reconhecê-lo, não eram obras-primas. Simplesmente blues, rhythm ‘n’ blues e rock, interpretados como se tivessem saído há pouco do forno. A voz sexuada de Jagger e a energia posta em ação pelos cinco elementos do grupo faziam aumentar ainda mais a temperatura. “The Rolling Stones”, de 1964, é um disco de “covers” (apenas um original de Jagger/Richards, “Tell me”), o mesmo acontecendo, em menor percentagem, ao americano “Now!” e ao inglês “Out of our Heads”, com três originais cada, ambos contendo um tema ícone em que Jagger vestia já a pele do diabo apaixonado, “Heart of stone” (é complicada esta teia de canções que saltam dos discos ingleses para os americanos; digamos, para facilitar, que os americanos, por razões comerciais, gostavam de incluir os “singles” nos alinhamentos).
O álbum clássico deste primeiro período, essencialmente de aquecimento e endurecimento na estrada poeirenta e dolorosa do “blues” e do “rhythm ‘n’ blues”, é “Aftermath” e é o primeiro em que a assinatura Jagger/Richards é visível em todas as faixas.

AS COISAS TORNAM-SE DIFERENTES
“Things are different today…” diz o primeiro verso de “Mother’s little helper” e, num flash, podia sentir-se a diferença. Os Stones tinham aprendido no duro, e sabe-se lá a troco de quê, a fazer vibrar a corda que leva ao estrelato. “Lady Jane” fez muita gente chorar e “Under my thumb”, com “Stupid girl”, desencadeou uma onda de acusações de misoginia contra o grupo. Mas as raparigas, em ponto de rebuçado, desmaiavam e gritavam enquanto os rapazes ensaiavam os trejeitos de anca que tornavam Jagger no mais escandaloso cantor da pop para multidões, juntando na sua pose andrógina a languidez de Presley, a fúria de Jerry Lee Lewis e o diabolismo, mal encapotado, de Screaming Lord Sutch. Tal combinação estava destinada a atear incêndios. Era costume apontar-se o facto de, depois de cada concerto, não haver um assento na sala que não ficasse com manchas de humidade… Pelo sim, pelo não, Ed Sullivan, que antes já banira o grupo do seu show televisivo, acabou por aceitá-los, na condição de trocarem o título do single “Let’s spend the night together” por “Let’s spend some time together”.
Curiosamente, corria o ano de 1966, e desprendia-se da música um sentimento de realidade, uma noção avassaladora das forças-motrizes da paixão. As canções de amor dos Stones não eram doces nem cor-de-rosa, desprendia-se delas, pelo contrário, uma negritude e um desespero que era, afinal, a mesma dos “blues” e que nunca abandonaram (“High and dry” recua aos primórdios… juntando-lhe uma faceta “vaudeville” que também se tornaria apanágio da banda). Lendo-se de outra maneira: em “Aftermath” não são ainda percetíveis os aditivos da droga. Certo, Brian Jones já acumulava visões e trouxera para o estúdio saltério, cravo, sinos e marimbas. Eram ainda os Stones “hard workin’ band” de “It´s not easy”, mas prontos para se enredarem nas malhas da pop de “I am waiting” ou no distanciamento de si mesmos e no humor, muito Zappiano, de “What do do”. As coisas tornar-se-iam ainda mais diferentes no álbum seguinte, “Between the Buttons”, para descambarem na alucinação pura em “Their Satanic Majestic Request”.
“Their Satanic…” era LSD em forma de canções. “Between the Buttons” tinha ainda um pé na terra, mas as cabeças já voavam… O mote poderia ser o título da última faixa: “Something happened to me yesterday”. E as ondulações de vibrafone, a guitarra distorcida e as harmonias vocais de “Yesterday’s papers” dão-lhe razão – os Stones tinham entrado num novo território, o Psicadelismo. “My obsession” é irresistível, e a prova de que a pop também sabe swingar. Um conselho para as bandas debutantes: ouçam este tema e aprendam. “Back street girl” é Stones valsa-musette, enquanto “Connection” soa como uma variante pedrada de “I’m a believer”. O órgão litúrgico e a “soul” embruxada são arrepiantes em “She smiled sweetly” e “Cool, calm & collected” sugere o que os Stones poderiam ter feito se tivessem sido autorizados a entrar no “Submarino Amarelo”.
Mas “Please go home”, apesar dos truques de estúdio, e “Miss Amanda Jones” (que deverá ter feito com que Lennon e McCartney se roessem de inveja) são a garantia de que os Stones mantinham o coração no lugar que sempre foi o seu: o “rhythm ‘n’ blues”. “Between the Buttons” é o “Revolver” dos Stones, o eterno segundo que o tempo, ano após ano, coloca mais próximo do topo.

DE REGRESSO À RUA
Do lado de vida, as coisas corriam de forma complicada. Jagger e Brian Jones foram presos por posse de droga, embora de imediato ilibados.
No Nebraska, EUA, um polícia apontou um revólver à cabeça de Keith Richards, obrigando-o a despejar no chão uma garrafa de Coca-Cola, com a suspeita de que estaria cheia de whisky (era ilegal bebê-lo em locais públicos). Em termos de publicidade, era bom para a imagem.
Quando “Beggars Banquet” foi editado em 1968, os Stones já tinham metido no saco dos “charts” de álbuns do Reino Unido, três “número um”, um “número dois”, dois “número três” e um “número quatro”. O contrato com o diabo estava a ser cumprido. Os Stones agradecem, ilustram a capa com uma retrete pública e abrem com “Sympathy for the devil”. É outro grande disco, a encetar o período “clássico”, simultaneamente um regresso às sonoridades de músculo, sangue e terra. Os “blues” voltavam para reivindicar os seus direitos. “Parachute woman”, “Jigsaw puzzle”, o “blues” imaculado de “Prodigal son”, “Stray cat blues” (viciante, viciante!) e o hino “Street fighting man” (curioso notar o ritmo martelo-pilão, em completa sintonia com os Velvet dos primórdios) tinham afastado definitivamente o espectro dos saltérios, das “sitars” e dos arranjos-labirinto, por troca com as guitarras e adrenalina para o povo. Existia uma razão de peso para que tal acontecesse: Brian Jones já lá não estava (partira para as estrelas). No Natal desse mesmo ano os Beatles também deixariam de estar. Deixava de haver entraves. A estrada estava aberta de par em par para a “maior banda de rock ‘n’ roll do universo”. Os Rolling Stones estavam sozinhos.

THE ROLLING STONES
Aftermath
9|10
Between the Buttons
10|10
Beggars Banquet
9|10
ABKCO, distri. Universal

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