JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 23 NOVEMBRO 2002
Música elétrica de Miles
Davis interpretada em Montreux passa a estar disponível em antologia de 20
CD.
Orgulho e
Preconceito
Miles Davis fez do jazz uma ciência exata. Di-lo a
exatidão e o rigor que pautaram todo o seu percurso como trompetista, da fase
be-bop ao lado de Charlie Parker à aventura do “cool”, antes de buscar alívio
no funk e no jazz rock para a sua solidão. Miles Davis é um traidor, clamam as
vozes que não perdoaram ao autor de “Bitches Brew” nem as mudanças abruptas nem
a entrega ao jazz rock.
Insatisfeito
e perfecionista por natureza, Miles transpôs para a música as várias facetas da
sua personalidade. Orgulho e resistência. Sente-se em cada uma das suas notas,
nos silêncios e na fragmentação milimétrica do tempo, a recusa do óbvio, a par
do orgulho que se esconde sempre por detrás das grandes solidões. Chamaram-lhe
“dark magus” (“mago negro”), “prince of darkness” (“príncipe das trevas”) e
“sorcerer” (“feiticeiro”). Miles foi tudo isso mas também o sonhador
desprotegido que uma criança de cinco anos tão bem soube desvendar: “Soa como
um rapazinho a chamar pela mãe.”
Não
é o Miles de “The Birth of the Cool”, “Miles Ahead” e “Kind of Blue” que agora
nos chega através da antologia “The Complete Miles Davis at Montreux,
1973-1991”, mas o Miles da chamada “fase elétrica”, captado exaustivamente nas
suas atuações no Festival de Montreux, entre a estreia, a 8 de Julho de 1973, e
a derradeira aparição, no mesmo dia e no mesmo mês, de 1991, pouco tempo antes
da sua morte, a 28 de Setembro desse ano.
Nenhuma
nota foi deixada de fora, da mesma forma que não se procedeu a qualquer
tratamento ou remistura posteriores. Todo o material aparece pela primeira vez
em CD, excetuando o último registo, correspondente ao encontro com Quincy
Jones, numa recapitulação em formato “big band” da colaboração entre o
trompetista e Gil Evans, que já estava documentado em “Miles Davis & Quincy
Jones Live at Montreux” (ed. Warner). O último CD da antologia – em cujo livro
foram impressas ilustrações em caneta de feltro com a assinatura do músico –
cobre ainda uma atuação em Nice, a 17 de Julho de 1991.
Encontramos
o Miles Davis do jazz rock e do funk, a dada altura indissociável da obsessão
pela moda, dos tiques de estrela e da consequente inanidade de muita da sua
música, atravessando quase duas décadas de Montreux. Mas se chega a ser
confrangedor assistir, já na fase descendente, à agonia do intérprete e à
facilidade de uma música completamente assimilada, provavelmente pelas razões
erradas, pelo “mainstream”, a presente antologia justificar-se-ia pela atuação
de 1973, dividida pelos dois CD iniciais, onde permanecem vivas e motivantes as
descobertas gloriosas encetadas em “In a Silent way”, “Bitches Brew”, “Jack
Johnson” e “On the Corner”.
O
público, compreensivelmente, assobiou, aceitando mal o que Miles tinha então
para oferecer – uma música de contornos psicadélicos, destituída da arquitetura
convencional do jazz, feita de pulsações e contrações, iluminações e zonas de
sombra, em longas divagações pelas regiões mais cósmicas (as mesmas de “In a
Silent way”) do jazz rock, servidas pelos sintetizadores de J. Mtume, o
saxofone “fusionista” de Dave Liebman e o baixo funky de Michael Henderson, com
Miles a apontar o caminho na trompete ou a brincar a um Sun Ra mais cerebral no
órgão eletrónico Yamaha.
Jazz
rock espacial que se tornaria funky muito por influência do produtor Paul
Buckmaster (homem do rock progressivo, dos Third Ear Band, mas também do rock,
de Bowie e dos Stones), que instigou o trompetista a introduzir na sua música
os sintetizadores planantes e as alucinações típicas não só do rock como da
eletroacústica de Karlheinz Stockausen. Miles, evidentemente, aceitou o repto,
moldando-se, moldando a sua música ao contexto. Se até Stockausen, ou “that guy
Steakhausen”, como lhe chamava, usava os sintetizadores…
Mas
nessa sessão de 1973 fazia sentido a estratégia de incitamento que Miles punha
em prática, destinada a fazer sobressair o melhor do talento criativo dos
jovens músicos que o rodeavam: “Don’t play what you already know” e “Practice
on stage”. Ou, para si próprio: “If I ever look back, I’ll die.” Os resultados
estão à vista num fluxo de energia sem princípio nem fim, como a música das
esferas. Alguns críticos, todavia, não reagiram bem e chamaram-lhe “trampa
repetitiva”. De dentro soava de outra maneira. O saxofonista Dave Liebman
explica como: “Não sei o que é que tocava. De vez em quando ele [Miles] olhava
para mim. E eu tocava. Era música que soava como se fosse proveniente da
‘Guerra das Estrelas’. Ou do futuro.”
Foi
essa incapacidade em voltar a pegar no passado, nele sinónimo de estagnação,
que fez Miles correr à frente do seu tempo mas também que provocou a
incompreensão, não só do público e da crítica, como de alguns dos seus
companheiros de jornada (Stan Getz chegou ao ponto de falar de “uma música
inútil”). O Miles que definhava à sombra de Parker, o anjo negro e revoltoso,
respondeu voltando as costas a uma música – o jazz – que passou a encarar com
crescente desconfiança. “O jazz, hoje, está mais próximo da música clássica do
que da música folclórica. E eu prefiro estar próximo da música folclórica”,
afirmou a propósito. Opção estética ou nada mais senão o lícito pretexto para
assim poder chegar junto do grande público, a verdade é que o Miles dos anos 80
é, se não o “traidor”, o fugitivo que progressivamente se crucificou na
dialética. Entre um trompete que se manteve até ao fim fiel à sua voz interior
e o vazio crescente das aparências sonoras entre as quais se refugiou.
Esse
é, de resto, um dos aspetos fascinantes da audição cronológica de “The Complete
Miles Davis at Montreux”. Para a sua trompete, mudança foi metamorfose, ascese
e transfiguração. Se o ar que dela saía se foi tornando, ano após ano, mais
rarefeito, é porque, a par da progressiva deterioração do estado de saúde do
executante, crescia o convívio, cada vez mais íntimo, com o silêncio, essa
grande pausa de onde irrompem todas as vozes.
Percorre-se
a antologia como se folheia as últimas páginas do livro de uma vida. Nos
últimos anos o reportório repete-se, com os alinhamentos a contemplarem versões
dos mesmos temas, tocados de tarde e de noite, como acontece nos CD 3, 4, 5 e 6
(relativos aos concertos de 1984) e 7, 8, 9 e 10 (de 1985). A partir de 1986, a
inclusão do “hit” de Cindy Lauper, “Time after time”, passa a ser uma
constante, testemunhando os diversos cambiantes de timbre, expressão e
luminosidade da trompete, entre o tom moribundo de 1986 e a queda do paraíso na
versão de 1989. “New blues”, outro tema recorrente, permite, por outro lado,
manter viva a memória de Miles dos primórdios, o “bluesman” espiritual que
ousou fazer frente a Dizzy Gillespie. Acompanha-se a descida ao inferno, nas
baladas inenarráveis, de um comercialismo declarado e sem vergonha, com o funk
a emergir como obsessão rítmica. Os fogachos com carimbo Weather Report ou a
importância de músicos como o guitarrista John Scofield e o saxofonista Kenny
Garrett iludem a evidência. Tornada transparente na sessão final de 1991. Miles
agonizava.
O
que estava previsto ser a coroa da programação do Montreux desse ano de
despedida, resultante do impulso de Quincy Jones, numa rendição da música de
Gil Evans (dos que mais fundo souberam olhar dentro da música de Miles,
oferecendo-lhe o génio dos seus arranjos e orquestrações) por uma “big band” de
50 elementos composta pela Gil Evans Orchestra (já sem o seu líder, falecido em
1988), a Concert Band de George Gruntz e uma galáxia de convidados, provou que
a ocasião pecou por tardia.
Miles
tornara-se uma sombra de si próprio, incapaz de manter o fôlego, enclausurado
num silêncio que se confundia já com mutismo, obrigado a recorrer ao “clone”
Wallace Rooney para o substituir nos ensaios ou no concerto, caso fosse
necessário. Os “medleys” de “Miles Ahead”, “Porgy and Bess” e “Sketches of
Spain” procuram contrariar a inércia com a força da apologia mas a memória
atraiçoa-os na comparação com os originais. Permaneceram o humor e a ironia de
um génio que, até ao correr da cortina, conservou intacta a essência de um
segredo. Discutia-se os custos do espetáculo, entre o músico e o organizador.
Miles dispara um aviso:
-
Vai sair bastante caro.
-
Mas por quê? O “cachet” da banda não pode ser assim tão elevado!...
-
Não é isso, homem, é que esta merda é mesmo difícil de tocar!
Miles Davis
The Complete Miles Davis at Montreux, 1973-1991
20xCD Warner
Bros., distri. Warner Music
7/10
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