11/09/2016

Um adeus feliz [Joni Mitchell]

Sons
29 Novembro 2002

um adeus feliz

Hippie, experimentalista, cantora de “standards”, voz tão profunda como a de Billie Holiday, despede-se com Travelogue. Um ciclo que se fecha ou será possível olhar-se a vida com mais de dois olhares?


JONI MITCHELL
Travelogue
2xCD Nonesuch, distri. Warner Music
8|10

“Come back Jonee”, gritavam no final da década de 70, com vozes de androide, os Devo. Vamos lá agora nós gritar a plenos pulmões: “Não te vás embora, Joni. Não abandones já a latrina. Tapa o nariz para não sentires o cheiro. Já viste os dois lados da moeda e fizeste-nos ver também”.
                “I’ve looked at life from both sides now. From win and lose, and still somehow, it’s life’s illusions I recall. I really don’t know life at all”. Quem escreve palavras como estas (de “Both sides now”, original de 1968 retomado no penúltimo álbum da cantora, com o mesmo título) não pode desaparecer assim sem mais nem menos. Seria trágico se tal acontecesse.
                Joni Mitchell é a mãe de quase todas as candidatas a divas que pululam atualmente no mercado discográfico. Foi ela quem lhes ensinou que as respirações e ornamentações vocais do jazz podem ser transpostos para a pop. Que a inteligência e pode e deve andar a par da intuição no universo do canto feminino. Cada canção dela é um “standard”. E “Both sides now” a mais “standardizada” de todas, tendo contabilizadas cerca de 300 versões, por artistas como Chet Atkins, Cilla Black, Clannad, Natalie Cole, Judy Collins, Bing Crosby, Doris Day, Ashley Hutchings, Stan Getz, Dizzy Gillespie, Go-Betweens, Benny Goodman, Hole, Hugh Masekela, Glenn Miller, Nana Mouskouri, Willie Nelson, Mary O’Hara, Pete Seeger, Frank Sinatra, entre muitos outros… E Maria João, na companhia de Mário Laginha, que a incluiu no alinhamento do novo álbum, “Undercovers”, e confessou de não ser capaz de susterás lágrimas ao ouvi-la.
                Da pop ao jazz, da folk à country, o seu reportório já passou pelas vozes e pela música de Keith Jarrett, Marianne Faithfull, Dave Stewart, Manfred Mann, Big Country, Mary Chapin Carpenter, Bob Dylan, The Albion Band, Richard Thompson, Paul Horn, Cyndi Lauper, Tori Amos, Diana Krall, Prince, Fairport Convention, Sergio Mendes & Brasil ’66, Tom Rush, Buffy St. Marie, Shawn Colvin, Colosseum, Cassandra Wilson, The Byrds, Petula Clark, Crosby, Stills & Nash, Bette Midler, James Taylor, Joshua Redman, Mathilde Santing, Thomas Dolby, Annie Lennox, Dave Douglas, Travis, Martha & The Muffins, Paul Desmond, Nazareth, Mary Black, His Name is Alive… A lista está longe de ser exaustiva. E continuará a aumentar nos tempos mais próximos.
                Medalha de mérito: Frank Zappa, que sempre soube lidar com as emanações letais da latrina, fez dela assunto de canção em “Billy the mountain”, no álbum “Just Another Band from L.A.”, de 971. Prince refere-a em “The Ballad of Dorothy Parker” (de “Sign o’ the times”, 1987) e Alanis Morissette em “Your House” (de “Jagged Little Pill”, de 1995). Impossível, portanto, ir-se embora agora, assim de repente.

                Quadros de uma exposição. Mas como Joni insiste na retirada, agarremo-nos com toda a força que temos a “Travelogue” (por falar nos Devo, os Human League têm um álbum com este nome…), o seu disco mais recente, um duplo álbum produzido de parceria com o marido, Larry Klein, que retoma canções antigas da sua discografia, em formato orquestral. “Love”, “Amelia”, “Woodstock”, “For the roses”, “The circle game”, “Hejira”, “Coyote”, de entre um alinhamento de 23, ressurgem em todo o seu esplendor, tornadas ainda mais clássicas, mais brilhantes, mais sentidas (em muitos casos, mais felizes), com o envolvimento orquestral da London Symphony Orchestra e as participações dos jazzmen Wayne Shorter e Herbie Hancock.
                A capa, como vem acontecendo desde “Turbulent Indigo”, serve de catálogo a algumas das suas pinturas, outras das áreas que domina de forma exemplar. O tom geral é o de uma sinfonia de sentimentos colhidos do passado como as flores de um jardim. Para não reavivar a dor, mas sem lhes retirar a cor. É um álbum mais luminoso e aberto que “Both Sides Now”, nas suas orquestrações efusivas mas que, curiosamente, em “The sire of sorrow” ou “For the roses”, evoca o “approach”, mais harpas e lantejoulas, de Mathilde Santing. Wayne Shorter diverte-se a valer, com o sax, e “Sex kills”, entre a licenciosidade da orquestra. Um adeus exuberante.
                Joni Mitchell afirma-se como a exceção a uma regra que faz da indústria opo uma selva de predadores.
                A cantora que deveria ter participado no primeiro festival de Woodstock mas não o fez por causa do trânsito ser intenso (estaria presente no da ilha de Wight, mas aí o equívoco entre a sua “performance” e a estupidez do público acabou em lágrimas e com a cantora a acusar a assistência de se comportar como uma horda de turistas…) esteve sempre à margem do “mainstream”. A “singer songwriter” com aparência de hippie de “Song to a Seagull” (1968), “Clouds” (1969), “Ladies of the Canyon” (disco de ouro, 1970), “Blue” (1971) e “For the Roses” (1972), a cantora de jazz de “Don Juan Reckless Daughter” (1977) e “Mingus” (1979), a esfinge de melodias glaciares de “Hejira” (1976), a experimentalista ousada que misturou eletrónica e ritmos africanos em “The Hissing of Summer Lawns” (1975), a veterana curiosa que nos anos 80 tentou (sem grande êxito, dizemos nós…) fazer “descer” a sua escrita à pop sintética, em “Wild Things Run Fast” (1982), “Dog Eat Dog” (1985) e “Chalk Mark in a Rainstorm” (1988), mas que finalmente se canonizou na catedral das grandes cantoras intemporais, na sequência, pintada a óleo da Renascença, formada por “Turbulent Indigo” (1994), “Taming the Tiger” (1998) e “Both Sides Now” (2000) é a “outsider”, a esteta, a incompreendida. A voz – uma voz que, compreendemo-lo ao sermos esmagados pela torrente de emoções, luzes e “torch songs” para a eternidade de “Both Sides Now”, desaguou em algumas das entoações e na mesma mágoa de Billie Holiday – que faz a diferença.
                Em 1970, após uma primeira retirada do “show business” para ter tempo de “procurar coisas novas”, Joni confessava: “Sentia-me isolada, como um pássaro fechado numa gaiola dourada, sem oportunidade para estar com as pessoas. O sucesso, por menor que seja, cerceia-nos em mais do que uma maneira” e “componho bastante de noite. Preciso de solidão para escrever. Antes era capaz de o fazer sob quaisquer condições, mas agora já não tenho de voltar para dentro de mim”. Trinta anos depois tudo volta a ser de novo posto em causa.
                Apenas uma coisa estava errada. Quando também afirmava que “não se pode cantar sempre as mesmas canções”. Afinal pode, como se pode comprovar por “Travelogue”. Com uma diferença: experimentam ouvir a versão de 1969 de “Both sides now” (no álbum “Ladies of the Canyon”) e a mesma canção, cantada em 2000, em “Both Sides Now”. A mesma mulher é outra mulher. E nós, que a acompanhámos, a mesma e outra pessoa. Crescemos. Estranha, dolorosa e humanamente aprendemos que o tempo apaga mas também engrandece. Só que os apaixonados nunca aprendem a lição. “Travelogue” prolonga o estado de graça de “Both Sides Now”. Alarga o quadro, permitindo ver a imagem de conjunto, quando antes cada pormenor era exposto numa sala diferente da galeria. “Agora já vi a vida dos dois lados. O lado de quem ganha e o lado de quem perde. E, ainda assim, são as ilusões da vida que recordo. Na verdade, não conheço a vida, de todo.
                “Travelogue” – a panorâmica geral.


“Travelogue” está disponível a partir de 2 de Dezembro, pela Warner

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