Sons
29 Novembro
2002
um adeus feliz
Hippie, experimentalista, cantora de
“standards”, voz tão profunda como a de Billie Holiday, despede-se com Travelogue. Um ciclo que se
fecha ou será possível olhar-se a vida com mais de dois olhares?
JONI MITCHELL
Travelogue
2xCD Nonesuch,
distri. Warner Music
8|10
“Come back Jonee”, gritavam no final
da década de 70, com vozes de androide, os Devo. Vamos lá agora nós gritar a
plenos pulmões: “Não te vás embora, Joni. Não abandones já a latrina. Tapa o
nariz para não sentires o cheiro. Já viste os dois lados da moeda e fizeste-nos
ver também”.
“I’ve looked at life from both sides
now. From win and lose, and still somehow, it’s life’s illusions I recall. I really don’t know life at all”. Quem escreve palavras como estas (de
“Both sides now”, original de 1968 retomado no penúltimo álbum da cantora, com
o mesmo título) não pode desaparecer assim sem mais nem menos. Seria trágico se
tal acontecesse.
Joni
Mitchell é a mãe de quase todas as candidatas a divas que pululam atualmente no
mercado discográfico. Foi ela quem lhes ensinou que as respirações e
ornamentações vocais do jazz podem ser transpostos para a pop. Que a
inteligência e pode e deve andar a par da intuição no universo do canto
feminino. Cada canção dela é um “standard”. E “Both sides now” a mais
“standardizada” de todas, tendo contabilizadas cerca de 300 versões, por
artistas como Chet Atkins, Cilla Black, Clannad, Natalie Cole, Judy Collins,
Bing Crosby, Doris Day, Ashley Hutchings, Stan Getz, Dizzy Gillespie,
Go-Betweens, Benny Goodman, Hole, Hugh Masekela, Glenn Miller, Nana Mouskouri,
Willie Nelson, Mary O’Hara, Pete Seeger, Frank Sinatra, entre muitos outros… E
Maria João, na companhia de Mário Laginha, que a incluiu no alinhamento do novo
álbum, “Undercovers”, e confessou de não ser capaz de susterás lágrimas ao
ouvi-la.
Da pop ao jazz, da folk à country, o
seu reportório já passou pelas vozes e pela música de Keith Jarrett, Marianne
Faithfull, Dave Stewart, Manfred Mann, Big Country, Mary Chapin Carpenter, Bob
Dylan, The Albion Band, Richard Thompson, Paul Horn, Cyndi Lauper, Tori Amos,
Diana Krall, Prince, Fairport Convention, Sergio Mendes & Brasil ’66, Tom
Rush, Buffy St. Marie, Shawn Colvin, Colosseum, Cassandra Wilson, The Byrds,
Petula Clark, Crosby, Stills & Nash, Bette Midler, James Taylor, Joshua
Redman, Mathilde Santing, Thomas Dolby, Annie Lennox, Dave Douglas, Travis,
Martha & The Muffins, Paul Desmond, Nazareth, Mary Black, His Name is
Alive… A lista está longe de ser exaustiva. E continuará a
aumentar nos tempos mais próximos.
Medalha
de mérito: Frank Zappa, que sempre soube lidar com as emanações letais da
latrina, fez dela assunto de canção em “Billy the mountain”, no álbum “Just
Another Band from L.A.”, de 971. Prince refere-a em “The Ballad of Dorothy Parker” (de “Sign o’ the
times”, 1987) e Alanis Morissette em “Your House” (de “Jagged Little Pill”, de
1995). Impossível, portanto, ir-se embora agora, assim de
repente.
Quadros
de uma exposição. Mas como Joni insiste na retirada, agarremo-nos com
toda a força que temos a “Travelogue” (por falar nos Devo, os Human League têm
um álbum com este nome…), o seu disco mais recente, um duplo álbum produzido de
parceria com o marido, Larry Klein, que retoma canções antigas da sua
discografia, em formato orquestral. “Love”, “Amelia”, “Woodstock”, “For the
roses”, “The circle game”, “Hejira”, “Coyote”, de entre um alinhamento de 23,
ressurgem em todo o seu esplendor, tornadas ainda mais clássicas, mais
brilhantes, mais sentidas (em muitos casos, mais felizes), com o envolvimento
orquestral da London Symphony Orchestra e as participações dos jazzmen Wayne
Shorter e Herbie Hancock.
A
capa, como vem acontecendo desde “Turbulent Indigo”, serve de catálogo a
algumas das suas pinturas, outras das áreas que domina de forma exemplar. O tom
geral é o de uma sinfonia de sentimentos colhidos do passado como as flores de
um jardim. Para não reavivar a dor, mas sem lhes retirar a cor. É um álbum mais
luminoso e aberto que “Both Sides Now”, nas suas orquestrações efusivas mas
que, curiosamente, em “The sire of sorrow” ou “For the roses”, evoca o
“approach”, mais harpas e lantejoulas, de Mathilde Santing. Wayne Shorter
diverte-se a valer, com o sax, e “Sex kills”, entre a licenciosidade da
orquestra. Um adeus exuberante.
Joni
Mitchell afirma-se como a exceção a uma regra que faz da indústria opo uma
selva de predadores.
A
cantora que deveria ter participado no primeiro festival de Woodstock mas não o
fez por causa do trânsito ser intenso (estaria presente no da ilha de Wight,
mas aí o equívoco entre a sua “performance” e a estupidez do público acabou em
lágrimas e com a cantora a acusar a assistência de se comportar como uma horda
de turistas…) esteve sempre à margem do “mainstream”. A “singer songwriter” com
aparência de hippie de “Song to a Seagull” (1968), “Clouds” (1969), “Ladies of
the Canyon” (disco de ouro, 1970), “Blue” (1971) e “For the Roses” (1972), a
cantora de jazz de “Don Juan Reckless Daughter” (1977) e “Mingus” (1979), a
esfinge de melodias glaciares de “Hejira” (1976), a experimentalista ousada que
misturou eletrónica e ritmos africanos em “The Hissing of Summer Lawns” (1975),
a veterana curiosa que nos anos 80 tentou (sem grande êxito, dizemos nós…)
fazer “descer” a sua escrita à pop sintética, em “Wild Things Run Fast” (1982),
“Dog Eat Dog” (1985) e “Chalk Mark in a Rainstorm” (1988), mas que finalmente
se canonizou na catedral das grandes cantoras intemporais, na sequência,
pintada a óleo da Renascença, formada por “Turbulent Indigo” (1994), “Taming
the Tiger” (1998) e “Both Sides Now” (2000) é a “outsider”, a esteta, a
incompreendida. A voz – uma voz que, compreendemo-lo ao sermos esmagados pela
torrente de emoções, luzes e “torch songs” para a eternidade de “Both Sides
Now”, desaguou em algumas das entoações e na mesma mágoa de Billie Holiday –
que faz a diferença.
Em
1970, após uma primeira retirada do “show business” para ter tempo de “procurar
coisas novas”, Joni confessava: “Sentia-me isolada, como um pássaro fechado
numa gaiola dourada, sem oportunidade para estar com as pessoas. O sucesso, por
menor que seja, cerceia-nos em mais do que uma maneira” e “componho bastante de
noite. Preciso de solidão para escrever. Antes era capaz de o fazer sob
quaisquer condições, mas agora já não tenho de voltar para dentro de mim”.
Trinta anos depois tudo volta a ser de novo posto em causa.
Apenas
uma coisa estava errada. Quando também afirmava que “não se pode cantar sempre
as mesmas canções”. Afinal pode, como se pode comprovar por “Travelogue”. Com
uma diferença: experimentam ouvir a versão de 1969 de “Both sides now” (no
álbum “Ladies of the Canyon”) e a mesma canção, cantada em 2000, em “Both Sides
Now”. A mesma mulher é outra mulher. E nós, que a acompanhámos, a mesma e outra
pessoa. Crescemos. Estranha, dolorosa e humanamente aprendemos que o tempo
apaga mas também engrandece. Só que os apaixonados nunca aprendem a lição.
“Travelogue” prolonga o estado de graça de “Both Sides Now”. Alarga o quadro,
permitindo ver a imagem de conjunto, quando antes cada pormenor era exposto
numa sala diferente da galeria. “Agora já vi a vida dos dois lados. O lado de
quem ganha e o lado de quem perde. E, ainda assim, são as ilusões da vida que
recordo. Na verdade, não conheço a vida, de todo.
“Travelogue”
– a panorâmica geral.
“Travelogue” está disponível a partir de 2 de Dezembro, pela Warner
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