Sons
2
Agosto 2002
FAIRPORT CONVENTION
Liege & Lief
Island, distri Universal
10|10
fairport convention
convenção dos deuses
Há álbuns que alteram o rumo da história da
música. Álbuns como “Velvet Underground & Nico”, “Sgt. Pepper’s Lonenly
Hearts Club Band” ou “Bitches Brew”. Álbuns que são semente, escândalo, choque,
maravilha. “Liege & Lief”, dos Fairport Convention, é um deles. Charneira
entre o folclore de velhos desdentados e velhas gaiteiras, mas ainda assim
gloriosos na forma como foram transmitindo, ao longo dos séculos, a tradição
oral, e a folk saída da imaginação de jovens urbanos e visionários, foi
determinante na transição das sonoridades arcaicas da velha Albion para novoso
modelos em que a ruralidade se eletrificou e revestiu dos ritmos, da atitude e,
já agora, das paranóias do rock.
“Liege
& Lief”, em resumo, inventou o “folk rock”. A presente reedição,
comemorativa dos 25 anos do grupo, depois de idêntica operação levada a cabo
com “Full House”, faz finalmente justiça a esta obra-prima da música popular
inglesa, limpando e remasterizando o som do original de 1969 e
acrescentando-lhes um par de inéditos, dos quais se destaca a vocalização de
Sandy Denny num tema que ressurgiria oficialmente no álbum seguinte, “Full
house”, na voz de Dave Swarbrick.
Para
trás tinham ficado o fascínio pelo psicadelismo “west coast” de grupos como os
Jefferson Airplane, evidenciado no álbum de estreia, “Fairport Convention”, mas
também a vénia a Bob Dylan e já uma dose considerável de curiosidade pelas
velhas danças “morris”, resultantes do interesse de um dos elementos fundadores
do grupo, Ashley Hutchings, por esta forma de dança ritual, entretanto caída em
desuso, nos dois álbuns seguintes, “What we Did on our Holidays” e
“Unhalfbricking”.
“Liege
& Lief” nasceu de condições excecionalmente favoráveis. Congeminado no
ambiente bucólico de uma mansão no Hampshire, em regime comunitário e ao abrigo
do ambiente de criatividade e utopia característicos do final dos anos 60,
beneficiou ainda da confluência de um “line-up” de exceção, onde pontificavam,
além de Hutchings, o mais ortodoxo delegado da convenção, Richard Thompson,
fenomenal guitarrista e compositor, Dave Swarbrick, violinista “virtuose” cujo
estilo influenciou as gerações posteriores folk rock inglês e, acima de todos
eles, a figura mágica e trágica de uma cantora que se tornaria num dos ícones
da música inglesa: Sandy Denny – uma voz tão tocada pela graça de Deus como
macerada pela personalidade tímida e insegura da sua dona.
Em
“Liege & Lief” tudo bate certo. Swarbrick e Thompson são os arquitetos do
templo. Foram eles que transportaram para a folk um lado hipnótico equivalente
ao que os Velvet introduziram no rock. “Come all ye”, “Matty groves” e “Tamlin”
potenciaram tudo o que a folk tinha de dança ritual em cadências marcadas por
crescendos épicos dos instrumentos eletrificados, o que deixou os
frequentadores mais empoeirados da ilustre Cecil Sharp House à beira de um
ataque de nervos mas, por outro lado, deu a conhecer ao público mais vasto do
rock uma música tão forte e capaz de aguentar a pedalada do “show business” e
dos tops de vendas, como qualquer outra. Mas se o violino e a guitarra
comandavam os ímpetos incontroláveis do corpo, era a voz de Denny que provocava
os arrepios da alma. Três canções de “Liege & Lief” raiam o sublime,
trazendo à luz uma tristeza sem fim e uma beleza cuja intensidade se torna
difícil de suportar: “Farewell farewell”, “The deserter” e “Crazy man Michael”.
Qualquer delas expondo o íntimo de Denny na mais completa nudez.
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