Pop Rock
31 de Outubro 1990
BRIAN ENO & JOHN CALE
Wrong Way up
CD, Opal,
distri. WEA, import. Contraverso
A LUZ ABSOLUTA
De súbito, uma grande claridade. Fez-se luz e separaram-se as águas na
estagnação confusa em que se debatem os criadores da cultura musical pop. E a
luz fez-se por obra e graça de dois músicos para quem essa palavra pouco
sentido faz. De Brian Eno se poderá dizer que nunca mais, desde “Before and
after Science”, quis saber da populaça e das suas músicas para consumo
imediato, refugiado na sua Penthouse, em Nova Iorque, a contemplar o céu e a
filmar-lhe as cores e movimentos. Trocando o bulício e o turbilhão pelo
infinito. Construindo sons a partir do silêncio e dando-lhes o nome de
ambientais, como em “The Shutov Assembly”, a editar brevemente. Hoje, os novos
seguem-lhe as pisadas e a “ambiente house” presta-lhe homenagem.
Para John Cale não se torna tão fácil manter essa distância. Ao contrário
de Eno, nascido musicalmente no seio do “glamour” vanguardista e decadente dos
Roxy Music, sem qualquer formação musical e servindo-se do rock como forma de
aprendizagem, Cale possuía formação clássica e, mesmo antes do delírio Velvet
Underground, dera provas de pertencer a outro universo musical, tendo estudado
com Aaron Copland, integrado as práticas esotéricas de La Monte Young e gravado
um álbum com o minimalista Terry Riley, “The Church of Anthrax”. O seu percurso
discográfico tem sido uma luta constante, contra e a favor do rock, procurando
dar-lhe um estatuto mais clássico (como em “Paris 1919” ou “The Academy in
Peril”), ou, inversamente, sabotando-o a partir do seu interior através de uma
guerrilha violenta, simultaneamente musical e textual (“Fear”, “Sabotage”,
“Music for a New Society”).
Cale e Eno já haviam colaborado em projetos anteriores, como “June 1,
1964” (ao lado de Kevin Ayers e Nico), ou em álbuns a solo do primeiro (“Fear”,
“Caribbean Sunset”, o recente “Words for the Dying”, cujo último tema, “The
Soul of Carmen Miranda”, prenunciava já a maravilha que se lhe seguiria) ou do
inventor da “música discreta” (“Another Green World”). “Wrong Way up” retoma
o caminho iniciado com “Before and after Science”. Tem pouco a ver com
toda a obra mais recentes de ambos os artistas (se excetuarmos o já citado tema
de “Words for the Dying”). Soa mais a Eno do que a Cale. Não admira: é aquele o
produtor e sente-se que foi ele a comandar as operações. A própria capa
apresenta uma estética decalcada de “Taking Tiger Mountain (by Strategy)”, num
“pastiche” ao método de repetição fotográfica utilizado pelo pintor alemão,
entretanto falecido, Peter Schmidt.
É um álbum de canções. Mas, quando se conhece a noção que Brian Eno tem
do termo, desde logo se fica à espera do inusitado. Se numa canção, na sua
forma convencional, o texto ocupa lugar primordial, Eno faz questão de, logo à
partida, considerar as palavras como formas de distrair a atenção do
fundamental – o som, a textura tímbrica. Como ele próprio afirma, “as letras
devem ter, tanto quando for possível, um significado mínimo, que não perturbe o
ambiente geral, sendo como que um espaço esculpido”. Durante as gravações de
“Wrong Way up”, sempre que John Cale chegava ao estúdio com um texto pronto,
logo Eno o convencia a deixa de escrever palavras que fizessem sentido. Para
ele estas valem apenas como jogo fonético. Conta o ex-Velvet Underground que um
dos métodos preferido de Eno consiste em começar por cantar simples vogais para
depois lhes acrescentar o esqueleto das consoantes. Em “Wrong Way up” tratou-se
de um jogo mútuo de desconstrução de sentidos, numa espécie de “cadavre-exquis”
fonético e linguístico, composto a dois.
Musicalmente, o álbum desenvolve-se segundo esquemas idênticos aos
utilizados por Eno em toda a sua obra até “Before and after Science”: “riffs”
fora de contexto, acentuação de pormenores quase aleatórios, vocalizações
surreais, predomínio das parcelas em relação ao todo (uma espécie de
microscopia sonora, metaforicamente definida por Eno como “uma floresta que
apresenta a mesma complexidade estrutural tanto ao nível da paisagem geral como
de cada folha em particular” – música fractal, pois claro.
Complexidade que soa sempre de forma natural, fazendo parecer simples o
que resulta de um trabalho de composição quase laboratorial – Eno fechava-se no
estúdio, em busca do som dourado, enquando Cale, mais convencional nos métodos,
jogava “squash”, à espera que chegasse a sua vez.
Dez temas preenchem, de forma brilhante, um álbum sem pontos fracos.
Canções perfeitas, estranhas, obedecendo e funcionando segundo lógicas daquelas
a que estamos habituados. Heterogéneas no modo como cada uma inventa universos
e discursos próprios. Homogéneas, porque se interligam de forma harmoniosa e
coerente, obedecendo a processos de exposição e tratamento sonoro só definíveis
como alquímico. Brian Eno é o mágico que transforma tudo o que toca em joia
deslumbrante. Na sua varinha de condão, que é o estúdio, tudo se torna luminoso
– os violinos atraentes e obsessivos de Nell Catchpole em “Lay me Love”, o jogo
de guitarras em “One Word”, a cadência etilizada de “In the Backroom”, como se
Kevin Ayers e os Can se encontrassem num “western” ambiental, os coros
“doo-wop” de “Empty Frame”, o piano e viola outonais a acompanharem o canto
límpido e profundo de Cale, em “Cordoba”, a caixa de ritmos e o rendilhado da
guitarra, fazendo lembrar os Durutti Column, de “Spinning Away”, o vento
eletrônico e as tablas de “Footsteps”, a viola tratada de “Been there Done
that”, o “boogie-woogie” pianístico de “Crime in the Desert” e a toada
evocativa e sonambúlica de “The River” (único tema sem a participação de Cale e
com Roger Eno nas teclas), prolongando as neblinas de “Down by the River” (de
“Before and after Science”) e elevando-se sem fim até ao cume do mundo em
melopeia encantatória, como a longa ascese de “Taking Tiger Mountain”, são
outros tantos quadros deslumbrantes que constantemente revelam novos pormenores
e diferentes perspectivas. Para “Wrong Way up” só há uma classificação
possível: obra-prima. *****
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