Pop Rock
7 de Novembro 1990
MELODIAS DE SEMPRE
SÉRGIO GODINHO
Escritor de Canções
LP e
MC duplos e CD, Edição Emi-Valentim de Carvalho
Entre 27 de Abril e 20 de Maio deste ano, Sérgio Godinho atuou no
auditório do Instituto Franco-Português. Sala pequena, propensa a intimismos e
cumplicidades. Conceito-novidade no esquema habitual dos espetáculos ao vivo,
em Portugal: o da temporada, com a permanência do artista numa determinada
sala, distribuída por um espaço temporal mais prolongado. Convivência com o local,
progressão do movimento e respiração teatrais e da própria “performance” –
entre tantos fatores que o formato em sala maior, para multidões,
impossibilita. Gravado a 7, 8 e 9 de Maio, “Escritor de Canções”, como se
autodenominou Sérgio Godinho na aventura e neste disco, testemunha uma atitude
e uma estratégia, em termos puramente estéticos, sempre arriscadas – reduzir
cada canção, entre um leque recolhido a partir de álbuns anteriores, ao
esqueleto essencial, valorizando a melodia e a interpretação em detrimento do
ritmo e do arranjo sofisticado. No palco e no disco, apenas a voz e a guitarra
acústica de Sérgio Godinho, acompanhados pelo piano e discretíssimo
sintetizador de Manuel Faria (dos Trovante) e o baixo de Nani Teixeira.
Encenação e luzes só no Instituto. Palmas calorosas, silêncios comovidos,
memória e presente de gerações e épocas cruzadas na magia de uma melodia ou de
um texto que não esqueceram, pedaços de vida por muitos sofrida ou alegadamente
fruída na companhia de uma frase ou de um refrão – tudo isto aconteceu em
noites passadas, à escuta de canções e recordações reacendidas e
compartilhadas. No disco, é diferente: há a distância, inerente à audição, em
outro tempo e outro palco, do registo gravado, longe da participação ativa com
a música e da presença corporal do artista. A reprodução do acontecimento não é
o mesmo acontecimento. O “Escritor de Canções” do disco não é o mesmo que as
cantou em carne e osso. Evidência que o próprio Sérgio Godinho faz questão de
salientar quando afirma que o álbum “quase podia ser um disco de estúdio
gravado com muito pouco público ou amigos extremamente atentos”. Coerente com
esta afirmação seria a não inclusão das palmas, aqui acrescentadas na mistura
final e soando nitidamente deslocadas, frias, quase digitais, contrariando o
tom intimista pretendido. Também o alinhamento dos temas não respeita o do
espetáculo, sem que se vislumbre o critério que presidiu à nova escolha.
Felizmente, e o que mais importa, vivem as canções, tão belas como as escutámos
no passado, revistas agora à laia de recapitulação, assinalando o final de um
ciclo e o começo de outro, ainda indefinido, no percurso do seu autor. Ninguém
como Sérgio Godinho tem sabido contar as grandezas e misérias do quotidiano
português – as suas alegrias e desilusões, o amor e as paixões que sempre
acabam, bem ou mal, em ressacas magoadas à luz da madrugada, vividas por
personagens com nomes vulgares, em histórias imaginárias que tantos fizeram
suas, como reais. Canções dos álbuns “Pré-Histórias” (73), “De Pequenino se
Torce o Destino” (76), “Pano Cru” (78), “Campolide” (79), “Canto da Boca” (80),
“Coincidências” (83), “Salão de Festas” (84), “Na Vida Real” (87) e “Aos
Amores” (89), mais um original de Charles Trenet, “L’âme des Poètes” e dois
originais: “Notícias Locais” e “Circunvalação”. Correspondentes a 16 anos
passados a cantar o interior e o exterior de uma “nação de poetas”, que carrega
num burro “para Lisboa os restos mortais de Fernando Pessoa” e em que todos
“regateiam amarguras, ilusões, trapos e cacos e contradições”.
Sérgio Godinho brinca com as palavras, cujo sentido se joga no modo como
fonética e naturalmente se atraem. Os sentimentos surgem a partir de uma
espécie de encantamento em que música e texto se juntam num todo solto ao
vento, que cada um entende como quer e a si prende com a força concedida pelo
sonho e a cegueira apaixonada que a ilusão provoca. Como o lamento daquela
rapariga “que se ergue e gira, rodopia e joga à cabra-cega” – “é de nós todos e
a ninguém se entrega”. ****
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