Pop
Rock
4 MAIO
1994
A DAMA E A VAGABUNDA
Dolores Keane e Kathryn Tickell. Uma voz da Irlanda, uma
gaita-de-foles de Northumberland, Inglaterra. Duas gerações da melhor música
tradicional britânica em confronto. Veterana e caloira arriscam outros passos,
fora da tradição.
Marcado inicialmente para 8 de Maio na Aula Magna, o
concerto de Dolores Keane e Kathryn Tickell foi antecipado um dia, para 7 de
Maio, no Coliseu dos Recreios. A organização deste espetáculo, integrado nas
atividades de Lisboa-94, justificou a alteração da data e do local com a
necessidade de arranjar um recinto com maior lotação. “A Aula Magna era um
local com lotação limitada para a importância do espetáculo”, disse um
porta-voz da organização. Mas então não viram isso logo de início?
Subordinado ao tema “A mulher na música popular”, de resto o mesmo da
última edição do Festival Intercéltico do Porto, o concerto promete muito,
imenso mesmo, se não acontecerem os imponderáveis que mancharam anteriores
iniciativas no campo da música folk promovidas com o apoio da edilidade
lisboeta. Para já, o programa oficial de Lisboa-94 relativo aos meses de Abril
e Maio incorre, no âmbito limitado deste concerto, num equívoco grave, para não
dizer na desinformação. Assim Kathryn Tickell é apresentada como sendo apenas
uma violinista da escola de Shetland (“fiddle”, que é o seu segundo
instrumento) sem se fazer qualquer referência às “Northumbran pipes”,
modalidade de gaita-de-foles característica da região de Northumberland (a mais
“céltica” de Inglaterra, nas palavras da artista), situada no Norte do país, na
qual Tickell se notabilizou como solista.
Kathryn Tickell vem a Portugal acompanhada da sua nova banda, da qual
fazem parte a acordeonista Karen Tweed, o baixista Geoff Lincoln e o
guitarrista Ian Carr (não, não é o trompetista dos Nucleus com o mesmo
nome...). Bastante jovem (25 anos) e bonita, vagabunda na estética e nos gostos
– Prince, XTC, Talking Heads, Ornette Coleman, Ian Dury, Sharon Shannon, já
para não falar de um tema do seu reportório que utiliza um “riff” de baixo dos
Hot Chocolate –, Kathryn Tickell possui o carisma e o talento que a poderão
levar ao estrelato. Para já tem sabido rodear-se de boas companhias, tendo
colaborado com Sting no álbum “Soul Cages” e, na área da folk, com os doutores
Chieftains, em “The Bells of Dublin”.
A propósito deste álbum merece a pena vê-la, num dos momentos de maior
magia do vídeo de longa duração feito sobre o disco, a manter um diálogo
descomplexado com o grande-mestre das “Uillean pipes” Paddy Moloney. O velhinho
e o borracho em completa sintonia. De discos em nome próprio de Kathryn Tickell
é que estamos mal servidos. Nem “Common Ground” nem o recente “Signs” chegaram
até agora a Portugal. Talvez na altura do concerto...
Dolores Keane, ao contrário da mocinha da gaita, é uma veterana. Uma
grande dama, como se costuma dizer, do canto tradicional da Irlanda. Nascida no
seio de uma família de músicos (a mãe é outra senhora cantora, como se viu, a
ela e à filha, no documentário “Bringing It All Back Home”, e o irmão mais
novo, coitado, mais modesto, acabou de lançar um álbum apenas engraçado, “All
Heart No Roses”), Dolores cantou com os Reel Union, datando de 1978, com esta
formação, o seu primeiro e esplendoroso álbum a solo, intitulado “There Was A Maid”.
Fez parte de uma das bandas emblemáticas do “British folk revival” dos anos 70,
os De Danann, com os quais gravou em 1975 o álbum de estreia “De Danann”,
regressando dez anos mais tarde, em “Anthem”, de 1985, e “Ballroom”, de 1987 na
companhia de outras duas notáveis cantoras, Mary Black e Maura O’Connell.
Os Chieftains acolheram-na no único dos seus álbuns onde está presente
uma voz feminina, “Bonaparte’s Retreat” (correspondente ao volume VI da
discografia do grupo). Mas foi em parceria com o seu marido e guitarrista John
Faulkner que a voz de Dolores encontrou o contexto mais fértil para a
explanação de todas as suas potencialidades. Nos álbuns “Farewell to Eirinn”,
“Sail Óg Rua” e “Broken Hearted I’ll Wander”, três jóias não só do canto
feminino como da música tradicional irlandesa em geral.
Infelizmente, nos últimos anos, Dolores Keane tem dado mostras de se
render ao apelo de um certo comercialismo, enveredando por um caminho semeado
de cedências e encostos à pop, o que, se por um lado mostra que permanecem
intactas, se possível até ainda mais requintadas, todas as suas capacidades
vocais, por outro deixa a impressão desagradável de uma voz acomodada a
facilidades que pouco ou nada adiantam da prestígio da cantora. “Dolores
Keane”, “Lion in the Cage” e “Solid Ground” são por isso para nós os álbuns
menos conseguidos. Talvez tenha faltado até agora a Dolores Keane (como também
a Maddy Prior...) o que não faltou a June Tabor – uma intuição e apropriação
corretas da contemporaneidade capazes de transformar uma grande cantora
tradicional numa grande cantora. Sem outros adjetivos.
DOLORES KEANE E KATHRYN TICKELL
7 de Maio, Coliseu dos Recreios, Lisboa
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