Pop
Rock
20
Abril 1994
WORLD
VÁRIOS
Lambarena
Celluloїd,
import. Contraverso
BACH NEGRO
A cobra mordeu a própria cauda. O ciclo está prestes a fechar. “Lambarena”
concilia o que na aparência parecia inconciliável. A fusão do mestre do barroco
Johann Sebastian Bach com a música tradicional de África. Promoveu o encontro
Albert Schweitzer, na cidade de Lambaréné, no Gabão. A coisa torna-se ainda
mais estranha quando lemos na ficha técnica que a realização deste projeto,
segundo uma ideia original de Mariella Bertheas, esteve a cargo de Pierre Akendengué
e Hughes de Courson, um antigo elemento do grupo francês Malicorne. Bach e
África, a matemática e a intuição, o contraponto e a repetição rítmica, polos
opostos que deixaram de o ser. Até certo ponto. A receita lê-se na pequena
fórmula enunciada na capa (uma embalagem cartonada em forma de cruz, no formato
digipack): “Pela exaltação, a regra encontra o ritmo. Pela exaltação o ritmo
encontra a regra.” Não diz muito, mas é bonito. Com a audição, faixa a faixa, o
espanto instala-se.
“Lasset uns den nicht zerteilen” é um canto da região do Ogoué sobre um
excerto da “Paixão segundo S. João”, com arranjo de Hughes de Courson. “Fugue
sur Mayingo” desloca o conceito de fuga através de um coro feminino clássico
que entoa a música de uma sociedade iniciática feminina chamada Ndjembé. Uma
melodia fang do Norte do Gabão põe em diálogo um xilofone africano com um
violoncelo, traçando a aproximação entre as simbologias rosacruciana e fang,
numa jiga retirada da Suite nº4 em mi bemol maior para violoncelo, de Bach. Em
“Bombé/Ruht wohl, ihr heilingen gebeine”, palmas rítmicas de uma cerimónia
ritual Bouiti Apindji acompanham os encantamentos proferidos por um
feiticeiro/orador, adaptando-se de forma incrivelmente natural a um excerto da
“Paixão segundo S. João”, tocado em cravo e violino. A mesma peça do compositor
alemão que, em “Herr unser herrsher”, a aliança das percussões dos convidados
Naná Vasconcelos e Sami Ateba faz soar a uma “pastiche” de Jean-Michel Jarre.
Já a junção do tradicional “Pepa nzac gnon ma” com o Prelúdio da partitura para
violino nº3, interpretada pelo grupo Elugu Ayong e Hervé Cavellier no violino,
o balafone, os tambores e o canto tradicional africano misturam-se de forma
harmoniosa com a melodia clássica. Um piano apoiado num batuque faz a ponte
entre um tradicional arranjado por Akendengué e o Prelúdio nº14, BWV 883.
Não param aqui as surpresas nem as ligações julgadas ilícitas. Um “Agnus
Dei” em que a Missa em si BWV 232 desagua num ritmo dos pigmeus não anda longe
das músicas do Quarto Mundo inventadas por Jon Hassell. De novo uma sociedade
iniciática do Gabão, deste feita masculina, a Yassi, no Ogoué Médio, região
onde fica situada a cidade de Lambaréné, junta o tradicional Okoukoué à Cantata
147. O barroco entrelaça-se com os ruídos da selva. Bach continua ao ritmo dos
tambores, num cerimonial de invocação dos espíritos, com Naná Vasconcelos a
percutir jarras e o coro numa interpretação do tema “A caça”, de Bach, a
diluir-se nos sopros de um corno de antílope. As núpcias do absurdo ficam
consumadas de forma um pouco patética na Cantata 147 – “Jésus, que ma joie
demeure”, misturada com extratos de “Mouse biabatou”, num triângulo kitsch de
bolhas da selva imaginária de Jon Hassell, murmúrios da sociedade iniciática
Lissimbou e um órgão beato fora do lugar.
Para o fim deixámos o tema que por si só vale todo o disco. Uma música
realmente nova e sem classificação possível, talvez a única que em “Lamabarena”
faz esquecer o termo “fusão”, nasce de “Inongo/Invention à trois voix nº3 en ré
majeur, BWV 789”. O arco musical ongongo (instrumento ritual da religião
Bouiti) de Yvon Kassa, o órgão de Oswaldo Calo e uma voz humana (ou de um deus
pagão?), gutural e ritmada, dão origem a qualquer coisa de sobrenatural, uma
entidade musical autónoma que transcende a dicotomia África-Ocidente.
Respiração do mundo, um estremecimento de ar, oração da selva numa capela verde
de esmeraldas vegetais.
Para que conste, os oficiantes de “Lambarena” são os grupos do Gabão
Okoukoué, Awana Africa, Elugu Ayong, Kokayl, Nzi Nimbu, M’Boudi, Nzimba,
Mendzang M’Assove, Lissimbu e o grupo coral
Le Chant sur la Lowé, tendo a seu lado uma formação de 34 músicos
europeus – coro, orquestra e solistas –, encarregados da interpretação das
partituras de Bach. A aldeia global, a anulação das distâncias, aí está, para o
melhor e para o pior. Sobre esta obra construída sobre o paradoxo diria o
publicitário Pessoa: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” (8)
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