02/08/2016

UHF + GNR

Pop Rock
17 de Outubro 1990

UHF
Julho, 13
LP duplo e CD, Edisom

GNR
In Vivo
LP duplo e CD, EMI-Valentim de Carvalho

São sobreviventes. São os dois que ficaram do tempo das iniciais: CTT, NZZN, TNT, lembram-se? Era a grande balda, a grande paródia. Duas guitarras, baixo e bateria chegavam para se gravar um disco. Assaquem-se as responsabilidades a Rui Veloso, que ainda hoje se deve estar a rir. Na época, UHF e GNR eram dois de entre tantos grupos que passaram pelo “Rock em Stock”, como toda a gente. UHF e “Jorge Morreu”, “Cavalos de Corrida”, “Rua do Carmo”, hinos entoados com entusiasmo por uma juventude que num ápice descobria que a música rock afinal não vinha só da estranja e que era possível encontrar entre portas o escapismo ideal para as suas angústias suburbanas. Porque era nos subúrbios, primeiro em Almada, depois nos arredores das restantes cidades, que respirava a alma coletiva dos UHF. Os GNR eram diferentes: “Espelho Meu” e “Sê um GNR” aliavam o narcisismo a uma subtil provocação. Onde os UHF apostavam desde o início num rock duro e “quadrado”, a banda de Vítor Rua escolhia a pop mais melodiosa, então ainda assimilada de forma incipiente. Com a chegada de Rui Reininho, tudo mudaria de figura.
UHF e GNR, ou vice-versa, para não ferir suscetibilidades, passaram, ao longo de dez anos, por fases boas e más. Houve crises, zangas, acidentes, discos de ouro, fracassos, grandes espetáculos, bailes de província, “apoteoses”, sempre adiadas, no estrangeiro. Entraram músicos, saíram músicos. Alexandre Soares, o mais recordado nos GNR. Renato Gomes, nos UHF. Ambos os grupos, independentemente da qualidade musical intrínseca do seu trabalho, souberam atravessar uma década mais ou menos incólumes. Gravando discos e, proeza das proezas, conseguindo, a dada altura, viver apenas desse trabalho. Instinto de sobrevivência só traduzido realmente em vida de facto, quando acompanhado pela tal qualidade, separadora do trigo e do joio. Dito de outro modo: A lei da selva em que sobrevivem os aptos e morrem os fracos e azarados, que o fator sorte também conta nestes casos. Evoluíram de forma diferente. Enquanto os UHF se mantiveram sempre fiéis a uma determinada linha, um rock de intervenção filtrado pelas vivências pessoais do seu líder incontestado, António Manuel Ribeiro, os GNR fizeram da heterogeneidade e surpresa constante o seu cavalo de batalha – entre “Espelho Meu”, “Avarias, “Hardcore” ou “Dunas” não existe rigorosamente nada em comum senão o inconfundível estilo vocal de Rui Reininho.
António Manuel Ribeiro e Rui Reininho são hoje, sem sombra de dúvida, duas das figuras de proa do rock ou da pop que por cá vamos tendo. Tão diferentes um do outro como um planeta de uma estrela. AMR (António Manuel Ribeiro) é o planeta, duro e sólido. RR (Rui Reininho) é a estrela, frágil e faiscante. AMR é Jim Morrison, voz rouca e monocórdica. RR é Bryan Ferry, ágil e amaneirado. AMR de há anos para cá que usa o mesmo corte de cabelo comprido, é anos 70, não liga ao “look”. RR usa cabelo curto e penteado, todo “style”, é pós-moderno, anos 80. Ambos são poetas, por assim dizer, mas enquanto AMR fala de coisas concretas e diretas como a “rua do Carmo”, “na tua cama” e “noites lisboetas”, com a convicção de quem quer mudar o mundo, RR, pelo contrário, esconde-se em trocadilhos e estrangeirismos ambíguos. Parece estar-se sempre nas tintas para tudo e a fazer cinema: “(Um chamado) eléctrico desejo”, “Morte ao Sol”, “Hardcore (1º escalão)”, “Vídeo Maria”. AMR ataca sempre de frente: É contra a tropa, defende com unhas e dentes as relações heterossexuais (de preferência numa cama que parece ser o lugar mais indicado para estas coisas), militante do rock que considera como “uma forma de vida”. RR não leva a sério nem sequer as suas próprias convicções. Quando diz que quer ver “Portugal na CEE” há quem acredite. Há rapazes na brincadeira, sobre as “dunas”. Provoca com um ar inocente. É capaz de afirmar a pés juntos que “Vídeo Maria” apenas diz respeito a uma tal Maria Isabel que até é sua amiga. Sobre o palco AMR é a imagem do rocker adulto, de guitarra ao ombro e dedo apontado ao “inimigo” – porta-voz de legiões de adolescentes que o idolatram sem reservas, espécie de messias com uma mensagem a transmitir. RR dança, é faz-tudo, representa sobre o palco mil personagens, ri-se muito, contradiz-se constantemente, como uma criança. AMR é cerveja e Incrível Almadense. RR é “bourbon” e Coliseu. AMR é UHF. RR é GNR (desculpa lá Vítor). “Julho, 13” e “In Vivo” são duas formas diferentes de se ser português, músico e bem sucedido. Representam como que a consagração das duas bandas nacionais que mais fizeram por vencer, à custa de muita incompreensão e de comer o pó da estrada.

Os discos, ambos duplos, não são melhores nem piores que os anteriores de estúdio. Incluem os temas que tornaram conhecidas as bandas respetivas, e que mais se venderam: “Efectivamente”, “Dunas”, “Hardcore”, “Bellevue”, “Vídeo Maria” ou “Valsa dos Detectives” (GNR); “Cavalos de Corrida”, “Rua do Carmo”, “Rapaz Caleidoscópio”, “Noites Lisboetas”, “Estou de Passagem” ou “Este Filme” (UHF). Todos os músicos participantes sabem do seu ofício e em ambos os discos é audível a participação eufórica do público. Excitação, energia, identificação, reconhecimento das canções. Objetos obviamente dirigidos ao consumo das massas. “Julho, 13” e “In Vivo” são também o exorcizar dos fantasmas do passado. Mas, se com a banda de Almada o tom é de pacificação, com a participação, nos três temas que preenchem a totalidade do terceiro lado, dos ex-UHF e seus fundadores, Renato Gomes, Carlos Peres e Zé Carvalho, em relação aos GNR o álbum marca a ferro e fogo o polémico conflito mantido entre os atuais membros da banda e o seu fundador Vítor Rua, num caso legal que se vem a arrastar sem que se vislumbre uma solução. Guerra e paz, nas águas mornas do meio discográfico nacional.  *** / ***

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