Pop
Rock
19 MAIO
1993
ENTRE A ESCURIDÃO E A LUZ
Na Folk e áreas afins os casalinhos funcionam. Em
termos musicais, pelo menos. Não faltam exemplos de pares cuja prole
discográfica resultou em cheio. Richard Thompson e a sua mulher Linda são um
desses casos. Com a mulher o eterno derrotista aprendeu a cantar canções de
amor. Antes de as luzes se apagarem.
Talvez porque a pressão exterior
seja menos intensa, os artistas conotados com a música tradicional funcionam
bem aos pares. Marido e mulher podem juntar forças e talento, sem preconceitos,
partindo do princípio que duas cabeças funcionam melhor que uma só. Sandy Denny
e Trevor Lucas, Maddy Prior e Tim Hart, John e Beverley Martyn, Shirley Collins
e Ashley Hutchings e, claro, Richard e Linda Thompson deixaram para a
posteridade obra consistente. Sandy Denny, a mulher que fez na Folk o mesmo que
Billie Holiday no jazz, formou com o marido, Trevor Lucas, um dos agrupamentos
que marcou a primeira fase do Folk Rock britânico, os Fotheringay. Maddy Prior
e Tim Hart formam “tandem” desde há muitos anos. Nos Steeleye Span e, enfim
sós, nos dois volumes de “Folk Songs of Olde England” e no belíssimo “Summer
Solstice”. Em duo com a mulher Beverley, assinou John Martyn dois dos seus
melhores trabalhos: “Stormbringer” e “The Road to Ruin”. “No Roses”, junção
pioneira da “morris dancing” com o Rock, resultou da inspiração conjunta de
Shirley Collins com o “pai” dos Albion Band, Ashley Hutchings que, como Richard
Thompson, fez parte da formação inicial dos Fairport Convention.
Estranha relação
Mas nenhum destes casais conseguiu,
como Richard Thompson e a sua mulher Linda, operar em regime de continuidade.
Richard e Linda foram feitos para trabalhar em conjunto. O pessimismo mesclado
de cinismo do ex-Fairport Convention adquiriu na voz de Linda outro tipo de
cores e uma profundidade dramática que afastava as canções de simples traumas e
angústias pessoais, trazendo-as para um contexto mais universalista. Richard
Thompson afirma que todas as suas canções são, de uma maneira ou de outra,
canções de amor. Mesmo quando se trate de um “Strange affair” ao ritmo trágico
de um “Wrong heartbeat”.
Richard Thompson conheceu Linda através de Sandy Denny. Linda Peters,
como então se chamava, era vocalista de apoio da diva, numa das suas bandas
anteriores aos Fairport. O guitarrista encetou desde logo com ela uma relação
amorosa que rapidamente passaria a artística. “Trabalhar em bandas separadas”,
disse ele, “era extenuante para uma relação entre dois jovens inexperientes
como nós”. Começaram a atuar juntos no circuito dos clubes e universidade e
finalmente casaram, em 1972. Sucedeu-se uma lista de álbuns, gravados entre
1973 e 1982, que guardaram um lugar à parte na Enciclopédia do Folk Rock
britânico, de “I want to see the Bright Lights tonight” (73), a sua obra-prima,
rosário de desilusões amorosas, inquietude e humor-negro que percorre toda a
paleta de emoções que vão da escuridão total às luzes amargas de uma feira, a
“Shoot out the Lights”. As luzes, no princípio e no fim. Que se acendem e
apagam, a marcar os limites de uma relação. Pelo meio, outros tantos diálogos a
dois entre sensibilidades e vozes que se complementavam na perfeição: “Hokey
Pokey” (1974), “Pour Down like Silver” (1975), “First Light” (1978) e “Sunny
Vista” (1979).
Religião e creme de gelado
Durante as gravações de “Hokey
Pokey”, Richard e Linda mudaram de som e encontraram uma religião. Musicalmente
foi o encontro com a banda Mighty Baby que Richard definiu como a “resposta
britânica à Tamla Motown”. A luz divina
e a tradução, em termos religiosos, dos seus conflitos existenciais,
encontrou-os o guitarrista no Islão e no sufismo dos muslim. O casal entrou
para a seita passando a sua música, a partir de então, a refletir uma nova
visão e perspectiva sobre os dilemas de sempre. Não se tratava, ainda segundo
as palavras do autor de “Henry the Human Fly”, de “uma conversão”, mas antes da
sistematização de algo em que ele sempre acreditara. Menos uma “adopção” ou
“conversão” a uma doutrina e mais um “reconhecimento”, a integração e projeção
da personalidade individual numa quadro de valores coletivo. No fundo a
transposição da terapia psiquiátrica a que o músico se submetera em 1969 –
fruto do choque sofrido com a morte da sua primeira namorada, Genie Franklin,
vítima do acidente de camião que transportava a primeira formação dos Fairport
Convention, no qual faleceu igualmente o então baterista Martin Lamble – para
um diferente contexto.
Mas nem tudo foram cardos e recordações
dolorosas. Em “Hokey Pokey”, no título tema, Richard e Linda usaram o creme de
gelado como metáfora para os prazeres do sexo e, em termos mais poéticos, para
“todas as formas de gratificação sensual”. Richard chamou a essa canção a
primeira da “fase pós-islâmica”. “It’s only fun”, acrescentou, dando a entender
ter por fim conseguido libertar-se dos traumas do passado.
A felicidade e o gozo obtido com o
creme de gelado foram contudo sol de pouca dura. Agora a dilaceração era de
outra ordem: entre a ortodoxia do islão e as pulsões da carne. A outro nível:
entre a utilização da música como veículo de mensagem ideológica e a escrita
espontânea de canções que apenas procuravam retratar os sentimentos de uma
pessoa vulgar. Afinal o eterno conflito entre a personalidade humana e o sopro
divino.
Ultrapassado o período místico, que
levou Richard Thompson e a mulher a posarem vestidos de muslim na capa de “Pour
Down like Silver”, à realização de um “Islamic tour” e ao recurso à
instrumentação e poesia árabes nos discos (como a tradução do poema “Song and praise
of the Shaykh”, de Si Fadul Al-Huwari), o álbum “Sunny Vista” inflete
deliberadamente no imaginário burguês ocidental, no seu vazio e nas suas taras,
naquele que fica como um dos álbuns mais mordazes, em termos conceptuais, da
dupla.
Frustrada a edição de um álbum, cuja
produção, a cargo de Gerry Rafferty, não satisfez Richard Thompson, que na
altura a considerou “demasiado encrespada”, a atividade artística do casal
terminou com “Shoot out the Lights”, título emblemático para um álbum que o
guitarrista declarou ter composto “a pensar na invasão do Afeganistão, pelas
tropas de Brezhnev”.
Em 1982, completando uma década de
união conjugal, Richard e Linda puseram fim à relação. Pressões externas,
aliadas a conflitos internos, motivaram a separação. Linda casou, pouco tempo
depois, com outro. Richard prosseguiu a sua história, agora solitário. A
história de um combate contra a escuridão.
Richard Thompson
Watching the Dark (8)
3xCD Hannibal, distri. MVM
“Watching the Dark”
ilumina facetas conhecidas de Richard Thompson, da sua carreira com a mulher,
Linda Thompson, aos álbuns a solo, a par de recantos e prestações mais
obscuros: baladas gravadas ao vivo com acompanhamento de guitarra acústica,
inéditos previstos para inclusão num álbum não editado, registos ao vivo de
clássicos como “Calvary cross” ou um tema do período “sufi”, gravado com Fred
Frith, Henry Kaiser e Jon French para o álbum “Live, Love, Larf & Loaf”.
Ainda um bom motivo para recordar a voz de Sandy Denny, presente em dois temas
retirados de “Unhalfbricking”, álbum de 1969, dos Fairport Convention: “A
sailor’s life” e “Genesis hall”.
Sequências de extroversão rock
alternam com os instantes de recolhimento criados pela voz sombria de Linda
Thompson (incluindo “The great Valerio”, pura fantasmagoria). Entre os vários
temas tradicionais destaca-se o inédito “Poor wee jockey Clarke” no qual
Richard Thompson toca sanfona.
John Kirkpatrick, Watersons, Clive
Gregson e Christiane Collister, Aly Bain, Dave Swarbrick, Ashley Hutchings,
Sandy Denny, Phil Pickett, Nic Jones, Sue Draheim e Barry Dransfield participam
ao lado de Shawn Colvin, John Hiatt, Henry Lowther, Danny Thompson e Gerry
Rafferty, nesta biografia musical de um homem que não tem medo do escuro.
Nota: Este texto integra um destaque denominado “Casais”
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