CULTURA
DOMINGO, 2 JAN 2005
Crítica
Música
Woody, tocante anacronismo
New Orleans Jazz Band
Casino
do Estoril. Dia 1 de Janeiro, à 1h. Sala cheia.
O realizador de cinema a
dedicar grande parte do seu tempo e da sua vida a tocar um estilo de jazz que os
compêndios registam não mais do que nas suas primeiras páginas? Certamente uma
imensa paixão e o puro gozo de tocar. Woody Allen esteve no Casino do Estoril
como uma estrela de cinema mas o seu desempenho como músico deve ser visto como
algo mais que um capricho de vedeta ou mero “fait divers”, forma de
entretenimento, de uma personalidade reconhecidamente complexa.
Não, Woody Allen toca clarinete como se disso dependesse a
sua vida e como se o nascimento do jazz fosse uma fonte eterna situada fora do
curso de tempo. Ele e os restantes músicos da New Orleans Jazz Band cumprem
metodicamente um acto de amor. Nenhum deles é um grande músico mas a música que
fazem cresce na medida da sua entrega. Compõem o quadro de uma banda irreal,
presa para sempre ao seu ritual.
Woody esteve sentado no meio da fila da frente, com os
holofotes apontados a si. Iniciou a sua atuação num solo sem rede, apenas
acompanhado pelo banjo, deficientemente amplificado, de Eddy Davis, e o
contrabaixo de Conal Fowles. O timbre e o fraseado que saem do seu clarinete
são secos, quase agrestes. Mas o espírito e o “swing” estão bem vivos e é essa
vitalidade que ilumina toda a atuação da New Orleans Jazz Band. Tanto Woody
como Simon Wettenhall (trompete) e Jerry Zigmont (trombone) deram tudo por
tudo, fazendo as marcações e os floreados, nunca muito complicados, que o
escasso número de acordes utilizados neste estilo de música exige. Cynthia
Sayer, presença sensual no piano, apesar de se fazer ouvir deficientemente,
segurou as pontas e deu terreno livre. Eddy Davis, e o seu banjo, é uma
entidade vinda de outro mundo, um anacronismo sábio que assume por inteiro a
sua missão. Woody e toda a mitologia que o rodeia faz o resto.
É ele que arrasta a imaginação. Mesmo em silêncio, o seu
rosto e os seus olhos fechados revelaram que a música nunca pára de o sacudir
por dentro. Ele tem dentro de si os “blues” e uma religiosidade que não se
perdeu. Sentiu-se isso em cada nota que tocou.
O seu jazz pode ser um filme menor na sua obra mas é sem
dúvida a expressão de uma necessidade interior. Por isso, à sua escala própria,
foi um momento, se não grande, pelo menos tocante.
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