05/11/2020

Woody, tocante anacronismo [Woody Allen]

 CULTURA

DOMINGO, 2 JAN 2005

 

Crítica Música

 

Woody, tocante anacronismo

 

New Orleans Jazz Band

Casino do Estoril. Dia 1 de Janeiro, à 1h. Sala cheia.

 

O realizador de cinema a dedicar grande parte do seu tempo e da sua vida a tocar um estilo de jazz que os compêndios registam não mais do que nas suas primeiras páginas? Certamente uma imensa paixão e o puro gozo de tocar. Woody Allen esteve no Casino do Estoril como uma estrela de cinema mas o seu desempenho como músico deve ser visto como algo mais que um capricho de vedeta ou mero “fait divers”, forma de entretenimento, de uma personalidade reconhecidamente complexa.

Não, Woody Allen toca clarinete como se disso dependesse a sua vida e como se o nascimento do jazz fosse uma fonte eterna situada fora do curso de tempo. Ele e os restantes músicos da New Orleans Jazz Band cumprem metodicamente um acto de amor. Nenhum deles é um grande músico mas a música que fazem cresce na medida da sua entrega. Compõem o quadro de uma banda irreal, presa para sempre ao seu ritual.

Woody esteve sentado no meio da fila da frente, com os holofotes apontados a si. Iniciou a sua atuação num solo sem rede, apenas acompanhado pelo banjo, deficientemente amplificado, de Eddy Davis, e o contrabaixo de Conal Fowles. O timbre e o fraseado que saem do seu clarinete são secos, quase agrestes. Mas o espírito e o “swing” estão bem vivos e é essa vitalidade que ilumina toda a atuação da New Orleans Jazz Band. Tanto Woody como Simon Wettenhall (trompete) e Jerry Zigmont (trombone) deram tudo por tudo, fazendo as marcações e os floreados, nunca muito complicados, que o escasso número de acordes utilizados neste estilo de música exige. Cynthia Sayer, presença sensual no piano, apesar de se fazer ouvir deficientemente, segurou as pontas e deu terreno livre. Eddy Davis, e o seu banjo, é uma entidade vinda de outro mundo, um anacronismo sábio que assume por inteiro a sua missão. Woody e toda a mitologia que o rodeia faz o resto.

É ele que arrasta a imaginação. Mesmo em silêncio, o seu rosto e os seus olhos fechados revelaram que a música nunca pára de o sacudir por dentro. Ele tem dentro de si os “blues” e uma religiosidade que não se perdeu. Sentiu-se isso em cada nota que tocou.

O seu jazz pode ser um filme menor na sua obra mas é sem dúvida a expressão de uma necessidade interior. Por isso, à sua escala própria, foi um momento, se não grande, pelo menos tocante.

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