Sons
23 de Janeiro 1998
23 de Janeiro 1998
Ryuichi Sakamoto grava peça sinfónica
O pomo da discórdia
Ryuichi Sakamoto mudou de visual. Deixou crescer a barba e de ser louro, e trocou o ar “chic” da sua última visita a Portugal por uns ténis coçados e um novo álbum debaixo do braço, “Discord”, que irá tocar no nosso país por ocasião da Expo. Entretanto, voltou a estar por cá, para explicar um sonho que teve, sobre a fome em África. À pergunta “o que é que podemos fazer?”, e apesar de ter chamado a um dos seus espectáculos “F”, não respondeu da mesma forma que Abrunhosa. Compôs uma sinfonia.
Depois das versões para piano de câmara de “1996” e dos divertimentos pop de “Smoochy”, Ryuichi Sakamoto atirou-se à escrita de uma grande peça sinfónica em quatro andamentos sobre o tema da salvação. Ou a impossibilidade dela.
Para este japonês diletante – que nos anos 80, com os Yellow Magic Orchestra, fez sombra aos Kraftwerk como o grupo mais tecnopop do planeta, e nos anos 90 se tem dedicado, sobretudo, a representar e a compor para muitos filmes –, chegou a altura de se preocupar com os grandes problemas que afligem a humanidade. Notícias sobre a fome em África fizeram-no ter pesadelos. Daí que tenha sentido um impulso que o levou a escrever sobre a necessidade de salvação.
“Discord”, o álbum sinfónico resultante, traduz-se numa longa peça intitulada, paradoxalmente, “Untitled 01”, dividida em quatro andamentos. No último, podem ouvir-se mensagens gravadas e reproduzidas em simultâneo com as vozes de Patti Smith, Laurie Anderson, Bernardo Bertolucci, David Byrne, David Torn e DJ Spooky, entre outros. A todos eles Sakamoto perguntou: “O que é que a salvação representa para si?”
Para ele representou um disco cheio e melancólico, onde a inocência da magia amarela (como, antes, a do submarino amarelo) deixaram de ser possíveis. Deram lugar a uma tragédia. Imensamente elegante, como não podia deixar de ser.
PÚBLICO – É mesmo verdade que o ponto de partida para a composição de “Discord” foi um sonho?
RYUICHI SAKAMOTO – A ideia inicial, surgida durante a minha digressão de Janeiro do ano passado, genericamente designada por “F”, foi a de fazer orquestrações para as versões contidas em “1996”. Mas acabei por desistir. Tocámos essas canções tantas vezes que acabei por me fartar delas. Fiquei sem saber o que fazer.
Foi então que tive esse sonho, uma noite, que me disse para esquecer essas tais orquestrações, deixar para trás o passado e a escrever uma peça de música completamente nova. Uma peça sinfónica. Foi o que fiz. Corri para o meu estúdio e comecei ma escrever. A orquestra já tinha ido alugada. Tinha mesmo que escrever uma sinfonia. Tive um mês para o fazer. O álbum foi gravado com a orquestra, num concerto ao vivo.
P. – Foi esse sonho que lhe indicou a temática do álbum?
R. – Se tivesse um ano inteiro para pensar no assunto, talvez tivesse sido diferente. Mas só tinha um mês. Era preciso arranjar uma motivação. Como que procurei nos arquivos da minha memória algo que fosse emotivamente forte. Acabei por me centrar no sentimento provocado pela leitura de várias notícias sobre o problema da fome em África. Nas minhas reacções a esse problema.
P. – “Discord” pode ser encarado, de alguma forma, como um manifesto?
R. – A base sobre a qual o fiz foi a sensação provocada pela pergunta: “Há alguma coisa que eu possa fazer para salvar estas pessoas?”
P. – A música pode fazer alguma coisa?
R. – Não, a música não pode fazer nada. O que a música pode fazer é tornar-se numa reacção à realidade, fazer, talvez, as pessoas tomarem consciência dela, ao mundo em que vivem. E, em consequência, levá-las, por seu lado, a reagir. A música pode ainda ajudar-nos a partilhar os nossos problemas.
P. – E para a pergunta “o que é que a salvação representa para si?”, tem alguma resposta?
R. – Não tenho uma resposta. Não é importante eu dar uma resposta. O importante é cada um tentar responder a uma pergunta que não é simples. Em concreto, o problema passa pela compreensão, nos dias de hoje, da política, com a economia, a indústria e a história. Tudo está comprimido numa única realidade.
P. – “Discord” é um disco religioso?
R. – Talvez espiritual seja o termo mais indicado. Embora não seja praticante de qualquer religião, sou bastante sensível aos problemas colocados por elas. Pensei que as pessoas poderiam ter uma quantidade de opiniões diferentes sobre o problema da salvação. Por isso, fiz a pergunta a uma série delas.
P. – Não deixa de ser curiosa a sua evolução: de uma música materialista e robotizada, como era a dos Yellow Magic Orchestra, para as actuais preocupações humanistas...
R. – Não sigo um caminho linear, ando aos saltos daqui para ali, sou um indivíduo frenético. Provavelmente, serei hoje uma pessoa muito diferente da que era nos anos 80. Embora continue a trabalhar com as máquinas, com sequenciadores, “samplers” e computadores. Mas talvez seja necessário recuar às razões que me levaram, desta vez, a compor para uma orquestra. A tal ideia de orquestrar as versões de “1996” partia do pressuposto de utilizar a tecnologia mais sofisticada para captar o elemento mais analógico de todos: o ser humano. O meu próprio corpo estava ligado a um computador que transformava os movimentos em impulsos sonoros e visuais.
No concerto que farei, com base em “Discord”, no próximo dia 11 de Fevereiro, no World Financial Centre’s Winter Garden, em Nova Iorque [N. R. – com a colaboração de DJ Spooky, The Electra String Quartet, o guitarrista David Torn e o violinista Everton Nelson], a tecnologia terá um papel determinante, mas não propriamente musical. Será transmitido em directo pela Internet e as pessoas poderão em casa “aplaudir electronicamente”, transmitindo informação para um ecrã colocado em frente aos músicos da orquestra.
Tornou-se habitual, nos últimos tempos, fazer este tipo de transmissões “cybercast”, em vez do conceito tradicional de “broadcast”. Mesmo em Dezembro do ano passado, em Tóquio, quando toquei absolutamente sozinho, estava rodeado por um enorme aparato tecnológico.
P. – O “man machine” profetizado pelos Kraftwerk?
R. – Sim “the man machine”, uma relação entre o homem e a máquina. Cada vez mais intensa e mais rápida.
P. – Continua a acompanhar as evoluções tecnológicas na área da música?
R. – Sim, mas a maneira como esta tecnologia é usada varia muito, um engenheiro e um músico usarão a mesma máquina de maneiras muito diferentes. O que é útil para um não o é para outro. Há desenvolvimentos tecnológicos que só começarão a ser plenamente aproveitados daqui a um, dois anos. Outros, provavelmente, não terão qualquer utilidade. Trata-se no fundo de uma maneira de expandir a nossa liberdade e criatividade. Como poder trabalhar a partir de músicas antigas ou tradicionais. Os músicos estão sempre “esfomeados”.
P. – Coexistem em si um Ryuichi Sakamoto “tradicional” e outro mais virado para o futuro?
R. – Não tenciono alargar a distância entre esses dois “extremos”, mas continuarei a explorá-los. O mundo não é tão simples como isso – uma simples divisão entre o “velho” e o “novo”. É mais uma coisa tridimensional. É esta tridimensionalidade que tento desenvolver, através da imaginação.
P. – Entre as pessoas que contactou para recolher as respectivas vozes, no último movimento de “Untitled 01”, “Salvation”, o nome de Patti Smith parece um pouco deslocado, entre gente como Laurie Anderson ou DJ Spooky...
R. – Na maior parte das pessoas contactadas, mandei-lhes a pergunta e eles enviaram-me a gravação com a resposta, numa cassete DAT. No caso de Patti Smith, foi diferente. Cruzei-me com ela por acaso na plataforma da estação de comboios de Tóquio, ela estava a fazer na altura, uma digressão pelo Japão. DJ Spooky conhecia-a e foi ele que ma apresentou. Mas a gravação foi obtida por acaso. Tinha comigo um computador portátil e pus o microfone à frente dela.
P. – A propósito de DJ Spooky, continua a interessar-se pela música de dança?
R. – Costumava ouvir muito “hip-hop”, mas agora interesso-me mais pelo “drum’n’bass”. Na verdade, em paralelo com “Discord”, vai ser editado um álbum de remisturas do segundo movimento de “Untitled 01”, “Anger”, na editora Ninja, por vários DJ, que aproveitaram algumas partes retiradas desta peça. Não é bem “drum’n’bass”, é difícil de definir... Mas adoro ouvir todas as remisturas. Mostram-me uma nova direcção: a possibilidade de misturar “breakbeats” com elementos de música clássica.
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