29/11/2014

Godzilla abandonado [Pere Ubu]



Banda de David Thomas em rota de colisão

Godzilla abandonado

 Foi tudo o que o rock pode ter de glorioso e sublime mas poucos se deram conta. Queriam punkalhada, levaram com a verdade. O circo de David Thomas é suicida, a sua arte, total. Em troca recebeu incompreensão. Pere Ubu e o público de Lisboa. Dois mundos em colisão.

Mesmo sem ter terminado com o tema “Worlds in collision”, como estava previsto no alinhamento, o concerto – histórico – dos Pere Ubu em Lisboa, terça-feira, na Aula Magna da Universidade, assistiu à colisão de dois mundos. O da banda e o da maioria do público, insuficiente para encher o auditório, que foi incapaz de reagir positivamente. Descontando o entusiasmo de algumas dezenas de adeptos puros e duros da mítica banda de Cleveland que na segunda metade dos anos 70 crucificou o rock, os outros ficaram à toa, sem capacidade de resposta. Tomaram como provocação gratuita o que esteve longe de o ser. Se houve provocação, esta foi a da nudez, da entrega, da honestidade e da exigência absolutas.
            David Thomas não facilitou, é verdade. A sua atuação foi um constante desafio à inteligência, um punho erguido, mas também a fragilidade da vida e da arte, e a ternura, expostos num circo de “freaks” que apenas desejam ser amados. Debaixo da sua capa de mau rapaz, de sobrolho franzido e atitudes aparentemente incongruentes, David Thomas é a criança que nasceu diferente das outras e oferece aos outros essa diferença como dádiva. Lisboa não percebeu, foi vulgar e desbaratou-a.
            Depois da atuação dos portugueses Rollana Beat, e das colunas soprarem dois temas cuja inclusão não foi inocente, “Cheree”, dos Suicide e, dos anos 60, por vontade expressa de David Thomas, “The shape of things to come”, de Max Frost and the Troopers, os Pere Ubu encheram o palco. Literalmente.
            David “Godzilla” Thomas surge mais gordo do que nunca, de preto, gravata com as cores de bandeira portuguesa. Descalça-se e veste um avental vermelho eu tem colado uns estranhos aparelhómetros. Dos restantes quatro músicos, apenas Tom Herman, na guitarra, pertencera aos velhos Ubu. Os outros, Steve Mehlman, na bateria, Michele Temple, no baixo, e Robert Wheeler, no sintetizador e no seu antepassado theremin – participam no mais recente álbum, “Pennsylvania”.
            Arrancam em força com “30 seconds over Tokyo”. David Thomas faz má cara mas canta como um “castrati” possesso. Ao segundo tema, “Beach Boys”, do álbum “Ray Gun Suitcase”, levanta a voz e insurge-se com o luminotécnico: “Apontem para a mim a porcaria das luzes, sou eu o raio do vocalista da banda!”.
           
“Limitem-se a tocar!”

            O público ri e assobia, hesitante. Thomas faz uma pausa e explica que o alinhamento avançará por ordem alfabética, a “melhor maneira de evitar chatices”. Mais assobios, alguém grita: “Limitem-se a tocar!”. A resposta é fulminante: “Ah, não querem que falemos? Está bem, vamos ficar 50 segundos em silêncio”. Espanto. Não era brincadeira, durante 50 segundos, David permanece estático, de braços cruzados, a banda desativada. O público reage mal, ouvem-se exclamações de histeria. Há quem peça “punk”.
            A música recomeça. David caminha pelo palco, limpa com um pano a careca suada. Abraça as colunas e é então que se percebe eu os dispositivos presos no avental se destinam a interagir com os altifalantes, provocando uma espécie de feedback modulado.
            Os temas desfilam por ordem alfabética: Depois de “Beach Boys”, “Cry”, “Don’t worry”, “Dub housing”, “Final solution”, “Highwaterville”, “Louisiana train wreck”, “Monday morning”, “My dark ages”, “Rounder”, “Sad. TXT”, “Tourquoise finns”, “Urban lifestyle”, “Wasted” e “Wheelhouse”…, revisitando os álbuns “Dub Housing”, “Cloudland”, “Story of my Life”, “Raygun Suitcase” e “Pennsylvania”.
            “Alguém quer perguntar alguma coisa?” Reação nula, o público agita-se nas cadeiras. “Ok, e eu que tinha idealizado uma comunicação perfeita entre nós e vocês…”. David Thomas desliga-se do exterior e liga-se a si mesmo. O que aconteceu até ao final foi sublime, o teatro na sua aceção mais nobre e cruel, um homem solitário encenando em palco a sua solidão numa dolorosa entrega da carne e do espírito aos abutres.
            Ou se participa ou o melhor é ficar em casa a ver o “Big Brother”. David Thomas arrasta-nos para outra dimensão, fora do quotidiano. A sua representação obedece a uma disponibilidade absoluta para o risco. O que ele propõe é o jogo, tão perigoso quanto infantil, que faz vestir a pele de egos alternativos e viajar por mundos inexplorados. Como quando o vocalista pega num acordeão e se torna num rústico “folk singer” suspenso na “Lost Highway” ou sob a trovoada da “Straight Story” de David Lynch.
            Entre a cacofonia, Artaud e o rock suicidário – “um dia, o tempo há-de apanhar-nos a todos!” – David Thomas e os Pere Ubu avisam-nos de uma ameaça iminente, da derrocada dos sonhos. De uma queda. Mas insistimos em permanecer surdos. Até quando?
            Ao abandonar o palco é percetível no rosto do vocalista um último trejeito de desilusão, como quem diz: “Como é que eu consegui aturar estes gajos?”. Ou, em bom inglês: “Fuck!”

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