Banda
de David Thomas em rota de colisão
Godzilla
abandonado
Foi tudo o que o rock pode ter de glorioso e sublime mas poucos se deram conta. Queriam punkalhada, levaram com a verdade. O circo de David Thomas é suicida, a sua arte, total. Em troca recebeu incompreensão. Pere Ubu e o público de Lisboa. Dois mundos em colisão.
Mesmo sem ter terminado com o
tema “Worlds in collision”, como estava previsto no alinhamento, o concerto –
histórico – dos Pere Ubu em Lisboa, terça-feira, na Aula Magna da Universidade,
assistiu à colisão de dois mundos. O da banda e o da maioria do público,
insuficiente para encher o auditório, que foi incapaz de reagir positivamente.
Descontando o entusiasmo de algumas dezenas de adeptos puros e duros da mítica
banda de Cleveland que na segunda metade dos anos 70 crucificou o rock, os
outros ficaram à toa, sem capacidade de resposta. Tomaram como provocação
gratuita o que esteve longe de o ser. Se houve provocação, esta foi a da nudez,
da entrega, da honestidade e da exigência absolutas.
David
Thomas não facilitou, é verdade. A sua atuação foi um constante desafio à
inteligência, um punho erguido, mas também a fragilidade da vida e da arte, e a
ternura, expostos num circo de “freaks” que apenas desejam ser amados. Debaixo
da sua capa de mau rapaz, de sobrolho franzido e atitudes aparentemente
incongruentes, David Thomas é a criança que nasceu diferente das outras e
oferece aos outros essa diferença como dádiva. Lisboa não percebeu, foi vulgar
e desbaratou-a.
Depois
da atuação dos portugueses Rollana Beat, e das colunas soprarem dois temas cuja
inclusão não foi inocente, “Cheree”, dos Suicide e, dos anos 60, por vontade
expressa de David Thomas, “The shape of things to come”, de Max Frost and the
Troopers, os Pere Ubu encheram o palco. Literalmente.
David
“Godzilla” Thomas surge mais gordo do que nunca, de preto, gravata com as cores
de bandeira portuguesa. Descalça-se e veste um avental vermelho eu tem colado
uns estranhos aparelhómetros. Dos restantes quatro músicos, apenas Tom Herman,
na guitarra, pertencera aos velhos Ubu. Os outros, Steve Mehlman, na bateria,
Michele Temple, no baixo, e Robert Wheeler, no sintetizador e no seu antepassado
theremin – participam no mais recente álbum, “Pennsylvania”.
Arrancam
em força com “30 seconds over Tokyo”. David Thomas faz má cara mas canta como
um “castrati” possesso. Ao segundo tema, “Beach Boys”, do álbum “Ray Gun
Suitcase”, levanta a voz e insurge-se com o luminotécnico: “Apontem para a mim
a porcaria das luzes, sou eu o raio do vocalista da banda!”.
“Limitem-se a tocar!”
O
público ri e assobia, hesitante. Thomas faz uma pausa e explica que o
alinhamento avançará por ordem alfabética, a “melhor maneira de evitar chatices”.
Mais assobios, alguém grita: “Limitem-se a tocar!”. A resposta é fulminante: “Ah,
não querem que falemos? Está bem, vamos ficar 50 segundos em silêncio”. Espanto.
Não era brincadeira, durante 50 segundos, David permanece estático, de braços
cruzados, a banda desativada. O público reage mal, ouvem-se exclamações de
histeria. Há quem peça “punk”.
A
música recomeça. David caminha pelo palco, limpa com um pano a careca suada.
Abraça as colunas e é então que se percebe eu os dispositivos presos no avental
se destinam a interagir com os altifalantes, provocando uma espécie de feedback
modulado.
Os
temas desfilam por ordem alfabética: Depois de “Beach Boys”, “Cry”, “Don’t
worry”, “Dub housing”, “Final solution”, “Highwaterville”, “Louisiana train
wreck”, “Monday morning”, “My dark ages”, “Rounder”, “Sad. TXT”, “Tourquoise
finns”, “Urban lifestyle”, “Wasted” e “Wheelhouse”…, revisitando os álbuns “Dub
Housing”, “Cloudland”, “Story of my Life”, “Raygun Suitcase” e “Pennsylvania”.
“Alguém
quer perguntar alguma coisa?” Reação nula, o público agita-se nas cadeiras. “Ok,
e eu que tinha idealizado uma comunicação perfeita entre nós e vocês…”. David
Thomas desliga-se do exterior e liga-se a si mesmo. O que aconteceu até ao
final foi sublime, o teatro na sua aceção mais nobre e cruel, um homem
solitário encenando em palco a sua solidão numa dolorosa entrega da carne e do
espírito aos abutres.
Ou
se participa ou o melhor é ficar em casa a ver o “Big Brother”. David Thomas
arrasta-nos para outra dimensão, fora do quotidiano. A sua representação
obedece a uma disponibilidade absoluta para o risco. O que ele propõe é o jogo,
tão perigoso quanto infantil, que faz vestir a pele de egos alternativos e
viajar por mundos inexplorados. Como quando o vocalista pega num acordeão e se
torna num rústico “folk singer” suspenso na “Lost Highway” ou sob a trovoada da
“Straight Story” de David Lynch.
Entre
a cacofonia, Artaud e o rock suicidário – “um dia, o tempo há-de apanhar-nos a
todos!” – David Thomas e os Pere Ubu avisam-nos de uma ameaça iminente, da
derrocada dos sonhos. De uma queda. Mas insistimos em permanecer surdos. Até
quando?
Ao
abandonar o palco é percetível no rosto do vocalista um último trejeito de
desilusão, como quem diz: “Como é que eu consegui aturar estes gajos?”. Ou, em
bom inglês: “Fuck!”
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