cultura DOMINGO,
13 FEVEREIRO 2000
Savina
Yannatou e Primavera en Salonico deslumbram no CCB, em Lisboa
Uma voz
tocada pela graça
Sublimes. A
voz e o canto de Savina Yannatou, cantora grega com alma do tamanho do
Mediterrâneo. Num concerto que fez as pessoas sentirem-se, primeiro
deslumbradas, depois felizes. Ficou a sensação de estarmos em presença de
alguém tocado pela graça.
Nada fazia prever uma coisa
assim. Os álbuns de Savina Yannatou são, sem dúvida, magníficos – “Primavera en
Salonica”, “Songs of the Mediterranean” e o novo “Virgin Maries of the World”
–, mostrando uma voz que facilmente se percebe ser de exceção. Mas todos
aqueles que tiveram a felicidade de estar presentes, na noite de sexta-feira,
no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, para a
escutar, na companhia do grupo Primavera en Salonico, no âmbito do Festival das
Músicas e dos Portos, receberam algo mais, irrepetível: uma voz abençoada e uma
música que extravasa do Mediterrâneo para a eternidade.
Savina
é uma mulher bela. Mesmo sem cantar, a sua presença irradia força, brilho,
majestade. Envolta num longo vestido verde-musgo a cantora grega começou por
cantar “a capella” um tema tradicional da sua Grécia natal. A partir daí, ao
longo de duas horas de êxtase, teve início uma viagem pelas músicas do
Mediterrâneo e dos Balcãs com passagem pelo reportório sefardita, Albânia,
Itália, Israel, Bulgária, Roménia, Turquia, Andaluzia, pela música antiga, em
dois temas das “Cantigas de Santa Maria”, de Afonso X, o Sábio, rei de Espanha
e por um “Agnus Dei” cm origem no Congo.
Percebeu-se,
ao longo desta viagem – que para muitos terá sido iniciática… – que a voz de
Savina Yannatou não se esgota num único registo. Canção a canção, foram-se
abrindo portas que davam para salas com outras portas abertas para outras salas
com outras portas. Acenderam-se luzes. Revelaram-se segredos.
Uma
vezes abraçando-nos numa ternura impossível, noutras mergulhando ameaçadora na
escuridão de graves guturais, Savina Yannatou modulou a voz a seu bel-prazer,
pondo-a em sintonia ora com o canto multifónico (houve quem procurasse
desesperadamente no palco um inexistente tocador de didjeridu, não acreditando
que o som pudesse vir da voz…), ora, sobretudo nas canções italianas, com o
júbilo de um vibrato de uma riqueza tímbrica rara de encontrar.
Além
de ser uma extraordinária cantora de música tradicional, Savina mostrou no CCB
que o seu universo não se esgota no património do passado, por mais rico que
este se possa apresentar.
Foram
frequentes as vezes em que se entregou a improvisações onde o arrojo só
encontrou paralelo na forma quase inacreditável como colocou a voz.
Desceu
ao inferno e subiu ao céu, fez scat de jazz, brincou com as técnicas árabes,
foi criança e monstro, entrando sem cerimónias nos territórios sob a vigilância
de feiticeiras como Shelley Hirsch, Joan LaBarbara, Meira Asher, Diamanda Galas
e, sobretudo, Fátima Miranda. E a sua compatriota Irene Papas. E, coisa
espantosa, quando se poderia pensar na dificuldade da tarefa, num esforço
olímpico, aconteceu outro prodígio. Savina Yannatou mal se mexe ao cantar, o
corpo repousado num qualquer yoga secreto onde apenas o rosto se ilumina ou
escurece, como se o ato de cantar em uníssono com os deuses fosse a coisa mais
natural do mundo.
Diante
de todas estas maravilhas torna-se quase ingrata a tarefa de escrever sobre o
grupo que nos últimos anos tem acompanhado a cantora, os Primavera en Salonico
– a base, o edifício sólido que permitiu a Savina voar. Michalis Signadis foi
um contrabaixista transbordante de swing, Haris Lambrakis um flautista na
tradição dos antigos tocadores de “aulos” gregos, Kostas Vomvolos, no saltério
(na ocasição o “qanun” árabe), um oásis, e Kyryakos Gouventas, no violino, uma
chama irrequieta, em comparação com os mais discretos Yannis Alexandris, na
guitarra e no alaúde árabe, e Nikos Psofoyrogos, nas percussões.
Dois
“encores” e um ramo de flores premiaram a atuação de Savina Yannatou, uma das
maiores vozes femininas que passou nos últimos anos por Portugal.
No
penúltimo, a cantora fechou o círculo mágico, juntando, uma a uma, as ondas do
Mediterrâneo na lagoa de uma canção de embalar. Alguém sussurra que parece um
sonho. É difícil não sentir assim, ao ouvir esta voz tão próxima de nós e ao
ver este corpo de musgo iluminado por um único holofote. Não era preciso o
holofote. Savina Yannatou tem luz própria.
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