Na capa
ENTRE DOIS MUROS
Passada uma década sobre a edificação de “The
Wall”, Roger Water, dissidente dos Pink Floyd, regressa nos papéis de arquiteto
e carpinteiro. O muro volta a ser erguido. Em Berlim, claro, sobre os escombros
do outro e com honras de transmissão televisiva em todo o mundo.
Os muros separam e
protegem. Escondem e dividem. Existem duas espécies distintas: ou de cimento ou
qualquer outro material sólido e aqueles mais subtis, invisíveis, construídos
metodicamente só do lado de dentro. Os primeiros podem ser destruídos, deitados
abaixo com maior ou menor dificuldade. Os segundos utilizam materiais
indestrutíveis e flexíveis que resistem às pressões exteriores e às pancadas.
Moldam-se a elas. Adaptam-se. Os seus construtores são fabulosos arquitetos,
peritos na minúcia com que delineiam mirabolantes fantasias. Fantasmas criados
com todo o cuidado, mantidos vivos e atuantes graças a um constante apelo ao
medo, memória e imagens de monstros infantis.
Ascensão e Queda
Em finais de 1979, Roger Waters,
músico e letrista dos Pink Floyd, banda emblemática do psicadelismo, constrói
um muro descomunal gravado para a posteridade num disco chamado simplesmente
“The Wall”. “O Muro” pertence ao grupo das construções mentais inabaláveis e
impenetráveis. Decorridos dez anos a História confirma a regra atrás enunciada.
Uma das mais sólidas paredes jamais erguidas por mãos humanas revelar-se-ia,
finalmente, apenas um amontoado de tijolos. A 9 de novembro de 1989, cai o muro
de Berlim, sinónimo de terror e divisão, vergado às rajadas do vento dos novos
tempos.
No próximo dia 21 de Julho, o muro
volta a ser erguido. Desta vez como simulação e símbolo. No próprio local onde
se abriu passagem entre as duas metades de um todo nacional, Roger Waters
constrói de novo a sua monstruosa fantasia, sublimada em espetáculo gigantesco.
O fingimento substitui o horror, o “rock”, orgia mediática, multiplicando as
referências e paradoxalmente funcionando como veículo normalizador de uma
realidade complexa, unificada numa estratégia de massificação simplificadora.
Exorcismo simbólico e coletivo sintetizado num único conceito – o muro.
Catástrofes
A multidão que se concentrará nessa
ocasião na Praça Potsdam, em frente à Porta de Brandenburgo, em plena “terra de
ninguém” situada entre as duas antigas fronteiras, participará
inconscientemente num acontecimento único, mas não ao nível do que será
universalmente alardeado e difundido. Oficialmente, o concerto organizado por
Waters e Leonard Cheshire, veterano aviador na Segunda Grande Guerra, tem como
objetivo angariar fundos para uma bolsa permanente de auxílio às vítimas de
catástrofes e acidentes, o Memorial Fund for Disaster Relief, funcionando por
acréscimo como evocação e homenagem às vítimas dos dois conflitos mundiais e
das não menos mortíferas sequelas da Coreia ou do Vietname. Recorde-se que o
pai do antigo baixista e vocalista dos Floyd, também aviador, morreu num
acidente da Guerra de 1914-18 e que a sua ausência é precisamente um dos
fantasmas que assombram “The Wall”, o disco, abrindo caminho para a emergência
do oposto matriarcal, personificado na mão zeladora e castradora.
O Eterno Retorno
Depois de amanhã, num
superespetáculo que, para além de Waters, contará com Joni Mitchell, The Band,
Marianne Faithfull, Cindy Lauper, Sinead O’Connor, a Orquestra e Coro do
Exército Vermelho e bandas militares, milhares de pessoas serão de novo
emparedadas e embaladas nos braços quentes e protetores dos seus próprios
fantasmas, na tal “no man’s land”, estrato indefinido e uterino, terra de novo
fértil e semeada onde voltarão a crescer os frutos envenenados de renovados e
pujantes nacionalismos. A mãe-pátria recupera a sua vocação telúrica, capaz de
gerar filhos solares ou monstros disformes (como aqueles que flutuarão
ameaçadores sobre a multidão durante o concerto), consoante for fecundada pelo
macho do poder, em amor ou em paixão. A História nunca se repete? Ou vivemos
todos adormecidos no seio de novos espectros totalitários? Não é a própria
desmesura do espetáculo anunciado, em que cada espectador se quedará subjugado
por um excesso de imagens e sons à escala não humana (como as figuras e o
estádio monstruoso no interior da capa de “The Wall”), reduzido à condição de
simples número manipulado como um fantoche, manifestação evidente de subtil
totalitarismo? O indivíduo perdido na multidão e no gigantismo massificador
obedece cegamente aos estímulos sonoros e visuais. Moderno ritual de obediência
a ídolos que em vez do facho imperial empunham guitarras elétricas. E canções
do “top” substituem hinos guerreiros. Há sempre um “Führer” disposto a gritar
“slogans”. O “rock está à inteira disposição de candidatos.
O que se pretende da celebração e
festa encobre afinal mais sinistras formas. As boas intenções cumprem-se no
prolongamento contemporâneo de mal enterrados horrores. Evocam-se antigos
fantasmas para os exorcizar ou para os venerar? Convocam-se os mortos para
celebrar a vida, esquecendo que morte e vida formam a dupla face de um mesmo
rosto. O super-homem nietzschiano, como a criança, é inocente e despreza ambas
com soberana alegria. Quem preside afinal à reunião, Apolo ou Dyonisius? O sol
ou o solo? Berlim volta a ser centro do mundo. Destruído o muro que dividia
alguns e protegia outros, o espetáculo “The Wall” volta a suscitar eternas
dúvidas e recônditos receios. O novo fantasma chama-se Europa.
QUARTA-FEIRA,
18 JULHO 1990 VIDEODISCOS