22/07/2025

Entre dois muros [Pink Floyd]

 

Na capa

 

ENTRE DOIS MUROS

 

Passada uma década sobre a edificação de “The Wall”, Roger Water, dissidente dos Pink Floyd, regressa nos papéis de arquiteto e carpinteiro. O muro volta a ser erguido. Em Berlim, claro, sobre os escombros do outro e com honras de transmissão televisiva em todo o mundo.

 


Os muros separam e protegem. Escondem e dividem. Existem duas espécies distintas: ou de cimento ou qualquer outro material sólido e aqueles mais subtis, invisíveis, construídos metodicamente só do lado de dentro. Os primeiros podem ser destruídos, deitados abaixo com maior ou menor dificuldade. Os segundos utilizam materiais indestrutíveis e flexíveis que resistem às pressões exteriores e às pancadas. Moldam-se a elas. Adaptam-se. Os seus construtores são fabulosos arquitetos, peritos na minúcia com que delineiam mirabolantes fantasias. Fantasmas criados com todo o cuidado, mantidos vivos e atuantes graças a um constante apelo ao medo, memória e imagens de monstros infantis.

 

Ascensão e Queda

 

            Em finais de 1979, Roger Waters, músico e letrista dos Pink Floyd, banda emblemática do psicadelismo, constrói um muro descomunal gravado para a posteridade num disco chamado simplesmente “The Wall”. “O Muro” pertence ao grupo das construções mentais inabaláveis e impenetráveis. Decorridos dez anos a História confirma a regra atrás enunciada. Uma das mais sólidas paredes jamais erguidas por mãos humanas revelar-se-ia, finalmente, apenas um amontoado de tijolos. A 9 de novembro de 1989, cai o muro de Berlim, sinónimo de terror e divisão, vergado às rajadas do vento dos novos tempos.

            No próximo dia 21 de Julho, o muro volta a ser erguido. Desta vez como simulação e símbolo. No próprio local onde se abriu passagem entre as duas metades de um todo nacional, Roger Waters constrói de novo a sua monstruosa fantasia, sublimada em espetáculo gigantesco. O fingimento substitui o horror, o “rock”, orgia mediática, multiplicando as referências e paradoxalmente funcionando como veículo normalizador de uma realidade complexa, unificada numa estratégia de massificação simplificadora. Exorcismo simbólico e coletivo sintetizado num único conceito – o muro.

 

Catástrofes

 

            A multidão que se concentrará nessa ocasião na Praça Potsdam, em frente à Porta de Brandenburgo, em plena “terra de ninguém” situada entre as duas antigas fronteiras, participará inconscientemente num acontecimento único, mas não ao nível do que será universalmente alardeado e difundido. Oficialmente, o concerto organizado por Waters e Leonard Cheshire, veterano aviador na Segunda Grande Guerra, tem como objetivo angariar fundos para uma bolsa permanente de auxílio às vítimas de catástrofes e acidentes, o Memorial Fund for Disaster Relief, funcionando por acréscimo como evocação e homenagem às vítimas dos dois conflitos mundiais e das não menos mortíferas sequelas da Coreia ou do Vietname. Recorde-se que o pai do antigo baixista e vocalista dos Floyd, também aviador, morreu num acidente da Guerra de 1914-18 e que a sua ausência é precisamente um dos fantasmas que assombram “The Wall”, o disco, abrindo caminho para a emergência do oposto matriarcal, personificado na mão zeladora e castradora.

 

O Eterno Retorno

 

            Depois de amanhã, num superespetáculo que, para além de Waters, contará com Joni Mitchell, The Band, Marianne Faithfull, Cindy Lauper, Sinead O’Connor, a Orquestra e Coro do Exército Vermelho e bandas militares, milhares de pessoas serão de novo emparedadas e embaladas nos braços quentes e protetores dos seus próprios fantasmas, na tal “no man’s land”, estrato indefinido e uterino, terra de novo fértil e semeada onde voltarão a crescer os frutos envenenados de renovados e pujantes nacionalismos. A mãe-pátria recupera a sua vocação telúrica, capaz de gerar filhos solares ou monstros disformes (como aqueles que flutuarão ameaçadores sobre a multidão durante o concerto), consoante for fecundada pelo macho do poder, em amor ou em paixão. A História nunca se repete? Ou vivemos todos adormecidos no seio de novos espectros totalitários? Não é a própria desmesura do espetáculo anunciado, em que cada espectador se quedará subjugado por um excesso de imagens e sons à escala não humana (como as figuras e o estádio monstruoso no interior da capa de “The Wall”), reduzido à condição de simples número manipulado como um fantoche, manifestação evidente de subtil totalitarismo? O indivíduo perdido na multidão e no gigantismo massificador obedece cegamente aos estímulos sonoros e visuais. Moderno ritual de obediência a ídolos que em vez do facho imperial empunham guitarras elétricas. E canções do “top” substituem hinos guerreiros. Há sempre um “Führer” disposto a gritar “slogans”. O “rock está à inteira disposição de candidatos.

            O que se pretende da celebração e festa encobre afinal mais sinistras formas. As boas intenções cumprem-se no prolongamento contemporâneo de mal enterrados horrores. Evocam-se antigos fantasmas para os exorcizar ou para os venerar? Convocam-se os mortos para celebrar a vida, esquecendo que morte e vida formam a dupla face de um mesmo rosto. O super-homem nietzschiano, como a criança, é inocente e despreza ambas com soberana alegria. Quem preside afinal à reunião, Apolo ou Dyonisius? O sol ou o solo? Berlim volta a ser centro do mundo. Destruído o muro que dividia alguns e protegia outros, o espetáculo “The Wall” volta a suscitar eternas dúvidas e recônditos receios. O novo fantasma chama-se Europa.

 

QUARTA-FEIRA, 18 JULHO 1990 VIDEODISCOS

Tijolo a tijolo [Pink Floyd]

 

Na capa

 

TIJOLO A TIJOLO

 


            A loucura tem sido boa conselheira dos Pink Floyd. Pela formação britânica, responsável pelo nascimento e bom nome do psicadelismo dos anos 60, passaram pelo menos dois dos seus cultores: Syd Barrett, esquizofrénico com carimbo clínico, e Roger Waters, psicótico controlado que soube fazer render o peixe, isto é, a paranoia, ao preço de ocasião e com a indústria a apoiar.

            Syd é lenda. Perdeu-se na violência dos seus sonhos e alucinações. Escrevia pequenas histórias sob a forma de canções. Quando entrava no estúdio, o seu eterno estado sonambúlico transformava-se em delírio criativo. Compunha pequenas obras-primas. Cantava e tocava guitarra como se estivesse sozinho no Universo. Jogava com ninguém ao dominó, numa casa inglesa, daquelas escuras e antigas, cheias de fantasmas. Sempre em dias de chuva. Jogava enquanto esperava. A chuva nunca parou e a princesa que chegou não era a prometida. Espalhou as peças pelo chão e levou-o para o armário dos papões. Deixou testemunho das suas visões em “The Piper at the Gates of Dawn”. 1967, ano de todos os sonhos, para Syd, o início do pesadelo. Nunca mais veremos Emily tocar.

 

Viagens espaciais

 

            A partir do ano seguinte, o seu amigo Roger Waters inverte o sentido da viagem. Das estrelas na cabeça do gnomo Barrett para os grandes espaços cósmicos exteriores. Toma os comandos e aponta a nave para o coração do Sol (“Set the Controls for the Heart of the Sun”). “Interstellar Overdrive” estendida até à dimensões  épicos do absoluto. A sua maior ambição era compor a banda sonora do “2001”, de Kubrick. Ficou-se pelos tons “hippies” de Antonioni em “Zabriskie Point”, perdido nas selvas luxuriantes da “La Vallée”, de Barbet Schroeder.

            O tom épico e desmesurado que a música dos Pink Floyd demandava foi encontrado afinal na Mãe Terra. “Atom Heart Mother” (1970), viagem infinita por lado nenhum, acompanhada de orquestra e coros, em longa suíte que depurava até à perfeição as premissas enunciadas no compêndio psicadélico. Para trás ficavam “A Saucerful of Secrets” (1968) e a obra-prima incompreendida “Ummagumma” (1969), duplo álbum magistral, dos poucos verdadeiramente experimentais da época. No segundo disco, cada um dos quatro Floyd mostrou até que ponto a loucura se pode estruturar em obra de arte. Um dos temas chamava-se “Several Species of Small Furry Animals Gathering Together in a Cave and Grooving with a Pict”. Nunca antes no rock a natureza tinha cantado tão estranhamente como aqui.

            “Meddle” (1971) prolongava o segundo lado da “Atom Heart Mother”. Música de sol, mar e lonjura. Os Floys espraiavam-se indolentes pelas vastidões aquáticas de um sonho momentaneamente aquietado. Os pingos de “Echoes” reverberando num adeus pacificado à década finada. Com “The Dark Side of the Moon” (1973), a máquina dos dólares começou a faturar. “Welcome to the Machine” – os filhos pródigos regressavam ao lar, acolhidos de braços abertos pela indústria maternal. “Atom Heart Mother” permanece até hoje nos tops americanos. Waters é emparedado. Tijolo a tijolo, o muro começa a ser erguido. Em “Wish You Were Here” (1975), olha-se para trás, em busca de Barrett. “Shine on you Crazy Diamond”. Mas o diamante não voltará a brilhar. Os Pink Floyd perdem-se no caminho. “Animals” (1977) é um fracasso a todos os níveis. A banda, um mero grupo de suporte de Roger Waters.

 

A grande explosão

 

            A explosão redentora dá-se finalmente no último ano da década. É o grande exorcismo de Waters, que finalmente se assume como alma exclusiva dos Floyd. Libertam-se medos e paranoias durante anos acumulados. A história de “The Wall” é a biografia do músico. Grito revoltado contra o universo inteiro. A construção do muro levada a cabo nesse instante precário que decorre entre o nascimento e a morte. A mãe, os professores, as namoradas, os outros todos e o “outro” que é ele próprio são monstros agressivos que fazem da vida um inferno e uma guerra em que todos são “o inimigo”. Roger Waters vingava Syd Barrett. Onde este soçobrou, vergado ao peso da loucura, aquele vence, ao atirar os seus dejetos à cara do mundo. “The Wall” é finalmente o apontar de dedo a todas as mentiras do universo rock. Alan Parker passou-o para celuloide. Bob Geldof encarnou a figura do mártir. Quase todos dizem mal. Salva-se a fabulosa animação que dá vida às delirantes figuras desenhadas na capa do disco, da autoria de Gerald Scarfe.

            Esqueçam-se os capítulos mais recentes da odisseia Waters, “The Final Cut” (1983) e “The Pros and Cons of Hitch Hiking” (1984), assim como dos Pink Floyd sem ele em “A Momentary Lapse of Reason” (1987). O importante vai ser estar em Berlim no próximo dia 21 ou assistir a tudo pela televisão. Para ficarmos a saber como se constrói um muro. E se o destrói.

 

 

NÚMEROS

 

            O palco é o maior alguma vez construído (onde é que já se ouviu isto?) – 168 m de comprimento, 25 de altura. Vai levar um mês a erguer e duas semanas a destruir. 50 camiões transportam-no até ao local do concerto. Os bonecos insufláveis ultrapassam os dos Stones: são do tamanho de edifícios de seis andares. O “professor” mede 12 m com uma amplitude de braços de 31 m. O “porco” alcança os 15 m. Cada boneco é comandado através de uma grua de 45 m e controlado por 20 pessoas. No muro que será erguido ao longo do espetáculo, serão utilizados 2500 tijolos especiais, cada um medindo 1,5 m x  75 cm e peando 9 Kg. São 50 os obreiros. Ao todo serão 600 pessoas a trabalhar para esta produção. A energia necessária para pôr tudo a funcionar – 5 megawatts, 1,7 dos quais fornecidos pela (ainda) Alemanha do Leste e o resto por geradores próprios. Um gigantesco ecrã circular com 16 m de diâmetro rodeado por 36 “Vari lites” constituirá, na ocasião, a maior estrutura observável nos arredores da Porta de Brademburgo. Estão previstos um total de 46 min. De projeções de “desenhos animados”. Os céus de Berlim vão ser iluminados por 12 holofotes sincronizados. Tudo junto vai poder ser presenciado “in loco” por cerca de 150.000 pessoas.

 

VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA, 18 JULHO 1990

 

São Geldof está entre nós [Bob Geldof]

 

cultura SEXTA-FEIRA, 13 JULHO 1990

 

Hoje concerto no Campo Pequeno

 

São Geldof está entre nós

 

De crítico a punk. De punk a benfeitor. Percurso exemplar de Bob Geldof, que hoje nos visita, assentando praça na do Campo Pequeno para um concerto em que se faz acompanhar pela banda The Vegetarians of Love.

 


O evento está agendado para o final da noite, atuando antes os portugueses Censurados, pelas 21h, e os Xutos e Pontapés, uma hora depois. O concerto integra-se nas Festas da Cidade de Lisboa e comemora o quinto aniversário do megaconcerto “Live Aid”, de ajuda e solidariedade às vítimas da fome nos países africanos.

            Faz hoje precisamente cinco anos que o grandioso acontecimento, só possível devido ao esforço e idealismo empenhados de Geldof, serviu para alertar, a uma escala planetária, sobre um dos problemas mais prementes da nossa civilização, ao mesmo tempo que teve, como efeito perverso, fazer aumentar indiretamente as contas bancárias dos músicos presentes, à custa de publicidade maciça e gratuita.

            Foi a partir da realização do “Live Aid” que se tornaram correntes os concertos em defesa de todas as causas imaginárias, nomeadamente as ecológicas.

 

Cavaleiro da Paz

 

            Bob Geldof, irlandês de 35 anos, agraciado com o título de “Knight of the British Empire” pelos bons favores prestados à causa do Império, e proposto para prémio Nobel da Paz, fundou, em 75, a banda punk “The Boomtown Rats”, tornada conhecida graças a um requinte instrumental acima da média e à força apelativa e intervencionista de canções como “Looking after nº.1” e, sobretudo, o célebre “I don’t like Mondays” inspirado na matança de San Diego, em 79, em que a estudante Brenda Spencer assassinou vários colegas. Até ao ano culminante do “Live Aid” (prenunciado  por participações nos singles “Do They Know it’s Christmas” e “We are the World”, a banda do ex-crítico musical do “New Musical Express” gravou alguns bons discos, caso dos álbuns “A Tonic for the Troops” (78) e “The Fine Art of Surfacing” (79), pedradas no charco niilista e inconsequente em que o movimento punk se tinha então tornado.

 

Indefinição estética

 

            Após um período algo apagado em que “The Boomtown Rats” se viram confrontados com a indefinição estética dos anos que se seguiram ao “boom” da “New Wave”, Geldof ganha um novo fôlego através do papel principal que interpreta no filme “The Wall”, de Alan Parker, baseado no duplo álbum dos Pink Floyd e nas paranoias autobiográficas do seu líder Roger Waters. Autobiográfico é também o livro da sua autoria “Is that all?”, editado em 86 e o maior “best-seller” de sempre escrito por uma estrela de rock.

 

Vegetarianos do amor

 

            Concretizado o “Live Aid”, terminadas as atividades beneficentes em que chegou ao ponto de acompanhar, até ao fim, o percurso dos lucros do concerto, certificando-se de que o dinheiro chegava ao seu destino, sem desvios e “cortes” intermediários, Bob Geldof dedicou-se de novo à música e à gravação de discos, desta feita a solo – “Deep in the Heart of Nowhere”, donde foram extraídos os “hit singles”, “This is the World Calling” e “Like a Rocket” e o novo “The Vegetarians of Love” nome dado à banda que o acompanha na sua visita a Lisboa e que integra alguns dos músicos da excêntrica “Penguin Cafe Orchestra”.

            Colaborou com Dave Stewart (Eurythmics), Eric Clapton, Maria McKee (Lone Justice), e Alison Moyet. Já esteve em Lisboa, no início da década de 80, como punk. Dez anos depois, chega de novo à capital, agora com a auréola de santo.

 

 

Bob e os touros

 

NUMA MINICONFERÊNCIA realizada ontem à chegada ao aeroporto, Bob Geldof teve oportunidade de conversar com os jornalistas, a quem apelidou de “cínicos”. Admitiu ser conhecido sobretudo por atividades extramusicais e que a fama do “Live Aid” nunca mais o abandonou, mas é graças à música que “consegue pagar a contra da eletricidade”. Em relação ao concerto desta noite, não pretende veicular qualquer espécie de mensagem. “Não sou nenhum pregador” – afirmou – “e espero esta noite não ser o touro, embora seja reconfortante saber que em Portugal não os matam” – acrescentou, aludindo ao local de realização do concerto. Ainda sobre o espetáculo tauromáquico acha que, embora respeitando as tradições dos diversos países, aquele é “um entretenimento bárbaro, não havendo o direito de assustar e maltratar animais apenas para nossa diversão”. Não se sabe se pretende organizar um “Bull-Aid” de solidariedade aos irmãos cornúpetos. Quanto à música atual, que ouve na rádio, “é uma estupidez, os ritmos ‘acid’ e ‘house’ perfeitamente vazios, bons para festas, mas não dizem rigorosamente nada. Nos tempos atuais há imensas coisas para dizer e fazer”. O espírito de militância a vir novamente ao de cima. A opinião sobre a música vanguardista também não é abonatória – “John Lennon tinha razão, quando afirmou que ‘avant garde’ é o termo francês para dizer merda”. Alguns dos músicos que integram a sua banda de apoio, os Vegetarians of Love pertencem a uma das melhores formações vanguardistas britânicas – os Penguin Cafe  Orchestra.