Na capa
TIJOLO A TIJOLO
A loucura tem sido boa conselheira
dos Pink Floyd. Pela formação britânica, responsável pelo nascimento e bom nome
do psicadelismo dos anos 60, passaram pelo menos dois dos seus cultores: Syd
Barrett, esquizofrénico com carimbo clínico, e Roger Waters, psicótico
controlado que soube fazer render o peixe, isto é, a paranoia, ao preço de
ocasião e com a indústria a apoiar.
Syd é lenda. Perdeu-se na violência
dos seus sonhos e alucinações. Escrevia pequenas histórias sob a forma de
canções. Quando entrava no estúdio, o seu eterno estado sonambúlico
transformava-se em delírio criativo. Compunha pequenas obras-primas. Cantava e
tocava guitarra como se estivesse sozinho no Universo. Jogava com ninguém ao
dominó, numa casa inglesa, daquelas escuras e antigas, cheias de fantasmas.
Sempre em dias de chuva. Jogava enquanto esperava. A chuva nunca parou e a
princesa que chegou não era a prometida. Espalhou as peças pelo chão e levou-o
para o armário dos papões. Deixou testemunho das suas visões em “The Piper at
the Gates of Dawn”. 1967, ano de todos os sonhos, para Syd, o início do
pesadelo. Nunca mais veremos Emily tocar.
Viagens espaciais
A partir do ano seguinte, o seu
amigo Roger Waters inverte o sentido da viagem. Das estrelas na cabeça do gnomo
Barrett para os grandes espaços cósmicos exteriores. Toma os comandos e aponta
a nave para o coração do Sol (“Set the Controls for the Heart of the Sun”).
“Interstellar Overdrive” estendida até à dimensões épicos do absoluto. A sua maior ambição era
compor a banda sonora do “2001”, de Kubrick. Ficou-se pelos tons “hippies” de
Antonioni em “Zabriskie Point”, perdido nas selvas luxuriantes da “La Vallée”,
de Barbet Schroeder.
O tom épico e desmesurado que a
música dos Pink Floyd demandava foi encontrado afinal na Mãe Terra. “Atom Heart
Mother” (1970), viagem infinita por lado nenhum, acompanhada de orquestra e
coros, em longa suíte que depurava até à perfeição as premissas enunciadas no
compêndio psicadélico. Para trás ficavam “A Saucerful of Secrets” (1968) e a
obra-prima incompreendida “Ummagumma” (1969), duplo álbum magistral, dos poucos
verdadeiramente experimentais da época. No segundo disco, cada um dos quatro
Floyd mostrou até que ponto a loucura se pode estruturar em obra de arte. Um dos
temas chamava-se “Several Species of Small Furry Animals Gathering Together in
a Cave and Grooving with a Pict”. Nunca antes no rock a natureza tinha cantado
tão estranhamente como aqui.
“Meddle” (1971) prolongava o segundo
lado da “Atom Heart Mother”. Música de sol, mar e lonjura. Os Floys
espraiavam-se indolentes pelas vastidões aquáticas de um sonho momentaneamente
aquietado. Os pingos de “Echoes” reverberando num adeus pacificado à década
finada. Com “The Dark Side of the Moon” (1973), a máquina dos dólares começou a
faturar. “Welcome to the Machine” – os filhos pródigos regressavam ao lar,
acolhidos de braços abertos pela indústria maternal. “Atom Heart Mother”
permanece até hoje nos tops americanos. Waters é emparedado. Tijolo a tijolo, o
muro começa a ser erguido. Em “Wish You Were Here” (1975), olha-se para trás,
em busca de Barrett. “Shine on you Crazy Diamond”. Mas o diamante não voltará a
brilhar. Os Pink Floyd perdem-se no caminho. “Animals” (1977) é um fracasso a
todos os níveis. A banda, um mero grupo de suporte de Roger Waters.
A grande explosão
A explosão redentora dá-se
finalmente no último ano da década. É o grande exorcismo de Waters, que
finalmente se assume como alma exclusiva dos Floyd. Libertam-se medos e
paranoias durante anos acumulados. A história de “The Wall” é a biografia do
músico. Grito revoltado contra o universo inteiro. A construção do muro levada
a cabo nesse instante precário que decorre entre o nascimento e a morte. A mãe,
os professores, as namoradas, os outros todos e o “outro” que é ele próprio são
monstros agressivos que fazem da vida um inferno e uma guerra em que todos são
“o inimigo”. Roger Waters vingava Syd Barrett. Onde este soçobrou, vergado ao
peso da loucura, aquele vence, ao atirar os seus dejetos à cara do mundo. “The
Wall” é finalmente o apontar de dedo a todas as mentiras do universo rock. Alan
Parker passou-o para celuloide. Bob Geldof encarnou a figura do mártir. Quase
todos dizem mal. Salva-se a fabulosa animação que dá vida às delirantes figuras
desenhadas na capa do disco, da autoria de Gerald Scarfe.
Esqueçam-se os capítulos mais
recentes da odisseia Waters, “The Final Cut” (1983) e “The Pros and Cons of
Hitch Hiking” (1984), assim como dos Pink Floyd sem ele em “A Momentary Lapse
of Reason” (1987). O importante vai ser estar em Berlim no próximo dia 21 ou
assistir a tudo pela televisão. Para ficarmos a saber como se constrói um muro.
E se o destrói.
NÚMEROS
O palco é o maior alguma vez
construído (onde é que já se ouviu isto?) – 168 m de comprimento, 25 de altura.
Vai levar um mês a erguer e duas semanas a destruir. 50 camiões transportam-no
até ao local do concerto. Os bonecos insufláveis ultrapassam os dos Stones: são
do tamanho de edifícios de seis andares. O “professor” mede 12 m com uma
amplitude de braços de 31 m. O “porco” alcança os 15 m. Cada boneco é comandado
através de uma grua de 45 m e controlado por 20 pessoas. No muro que será
erguido ao longo do espetáculo, serão utilizados 2500 tijolos especiais, cada
um medindo 1,5 m x 75 cm e peando 9 Kg.
São 50 os obreiros. Ao todo serão 600 pessoas a trabalhar para esta produção. A
energia necessária para pôr tudo a funcionar – 5 megawatts, 1,7 dos quais
fornecidos pela (ainda) Alemanha do Leste e o resto por geradores próprios. Um
gigantesco ecrã circular com 16 m de diâmetro rodeado por 36 “Vari lites”
constituirá, na ocasião, a maior estrutura observável nos arredores da Porta de
Brademburgo. Estão previstos um total de 46 min. De projeções de “desenhos
animados”. Os céus de Berlim vão ser iluminados por 12 holofotes sincronizados.
Tudo junto vai poder ser presenciado “in loco” por cerca de 150.000 pessoas.
VIDEODISCOS QUARTA-FEIRA,
18 JULHO 1990
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