cultura SEXTA-FEIRA,
13 JULHO 1990
Hoje concerto no
Campo Pequeno
São Geldof está entre nós
De crítico a punk. De punk a benfeitor.
Percurso exemplar de Bob Geldof, que hoje nos visita, assentando praça na do
Campo Pequeno para um concerto em que se faz acompanhar pela banda The
Vegetarians of Love.
O evento está agendado para o final da noite, atuando
antes os portugueses Censurados, pelas 21h, e os Xutos e Pontapés, uma hora
depois. O concerto integra-se nas Festas da Cidade de Lisboa e comemora o
quinto aniversário do megaconcerto “Live Aid”, de ajuda e solidariedade às
vítimas da fome nos países africanos.
Faz
hoje precisamente cinco anos que o grandioso acontecimento, só possível devido
ao esforço e idealismo empenhados de Geldof, serviu para alertar, a uma escala
planetária, sobre um dos problemas mais prementes da nossa civilização, ao
mesmo tempo que teve, como efeito perverso, fazer aumentar indiretamente as
contas bancárias dos músicos presentes, à custa de publicidade maciça e
gratuita.
Foi a
partir da realização do “Live Aid” que se tornaram correntes os concertos em
defesa de todas as causas imaginárias, nomeadamente as ecológicas.
Cavaleiro da Paz
Bob
Geldof, irlandês de 35 anos, agraciado com o título de “Knight of the British
Empire” pelos bons favores prestados à causa do Império, e proposto para prémio
Nobel da Paz, fundou, em 75, a banda punk “The Boomtown Rats”, tornada
conhecida graças a um requinte instrumental acima da média e à força apelativa
e intervencionista de canções como “Looking after nº.1” e, sobretudo, o célebre
“I don’t like Mondays” inspirado na matança de San Diego, em 79, em que a
estudante Brenda Spencer assassinou vários colegas. Até ao ano culminante do
“Live Aid” (prenunciado por
participações nos singles “Do They Know it’s Christmas” e “We are the World”, a
banda do ex-crítico musical do “New Musical Express” gravou alguns bons discos,
caso dos álbuns “A Tonic for the Troops” (78) e “The Fine Art of Surfacing”
(79), pedradas no charco niilista e inconsequente em que o movimento punk se
tinha então tornado.
Indefinição estética
Após
um período algo apagado em que “The Boomtown Rats” se viram confrontados com a
indefinição estética dos anos que se seguiram ao “boom” da “New Wave”, Geldof
ganha um novo fôlego através do papel principal que interpreta no filme “The
Wall”, de Alan Parker, baseado no duplo álbum dos Pink Floyd e nas paranoias
autobiográficas do seu líder Roger Waters. Autobiográfico é também o livro da
sua autoria “Is that all?”, editado em 86 e o maior “best-seller” de sempre
escrito por uma estrela de rock.
Vegetarianos do amor
Concretizado
o “Live Aid”, terminadas as atividades beneficentes em que chegou ao ponto de
acompanhar, até ao fim, o percurso dos lucros do concerto, certificando-se de
que o dinheiro chegava ao seu destino, sem desvios e “cortes” intermediários,
Bob Geldof dedicou-se de novo à música e à gravação de discos, desta feita a
solo – “Deep in the Heart of Nowhere”, donde foram extraídos os “hit singles”,
“This is the World Calling” e “Like a Rocket” e o novo “The Vegetarians of
Love” nome dado à banda que o acompanha na sua visita a Lisboa e que integra
alguns dos músicos da excêntrica “Penguin Cafe Orchestra”.
Colaborou com Dave Stewart (Eurythmics), Eric Clapton,
Maria McKee (Lone Justice), e Alison Moyet. Já esteve em Lisboa, no início da década de 80, como punk. Dez anos
depois, chega de novo à capital, agora com a auréola de santo.
Bob e os touros
NUMA MINICONFERÊNCIA realizada ontem à chegada ao
aeroporto, Bob Geldof teve oportunidade de conversar com os jornalistas, a quem
apelidou de “cínicos”. Admitiu ser conhecido sobretudo por atividades
extramusicais e que a fama do “Live Aid” nunca mais o abandonou, mas é graças à
música que “consegue pagar a contra da eletricidade”. Em relação ao concerto
desta noite, não pretende veicular qualquer espécie de mensagem. “Não sou
nenhum pregador” – afirmou – “e espero esta noite não ser o touro, embora seja
reconfortante saber que em Portugal não os matam” – acrescentou, aludindo ao
local de realização do concerto. Ainda sobre o espetáculo tauromáquico acha
que, embora respeitando as tradições dos diversos países, aquele é “um
entretenimento bárbaro, não havendo o direito de assustar e maltratar animais
apenas para nossa diversão”. Não se sabe se pretende organizar um “Bull-Aid” de
solidariedade aos irmãos cornúpetos. Quanto à música atual, que ouve na rádio,
“é uma estupidez, os ritmos ‘acid’ e ‘house’ perfeitamente vazios, bons para
festas, mas não dizem rigorosamente nada. Nos tempos atuais há imensas coisas
para dizer e fazer”. O espírito de militância a vir novamente ao de cima. A
opinião sobre a música vanguardista também não é abonatória – “John Lennon
tinha razão, quando afirmou que ‘avant garde’ é o termo francês para dizer
merda”. Alguns dos músicos que integram a sua banda de apoio, os Vegetarians of
Love pertencem a uma das melhores formações vanguardistas britânicas – os
Penguin Cafe Orchestra.
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