06/11/2009

A saudade que veio do frio [Kreidler]

Sons

3 de Julho 1998

Kreidler passeiam pelo lado mais afastado do parque

A saudade que veio do frio

Frios mas sensíveis à saudade, os Kreidler voltam a povoar, com “Appearance and the Park”, os sonhos do pós-rock com uma actividade febril. Ou fabril. Sonham em japonês, com as máquinas dos Kraftwerk e os mistérios de Düsseldorf. Como um “haiku” a sua música vai directa ao essencial. Manipulando “a um nível abstracto” as emoções de quem a ouve.

Quando da saída de “Weekend”, álbum de estreia dos germânicos Kreidler, falámos com Stefan Schneider, também membro dos To Rococo Rot. Desta feita a conversa foi com o teclista e sintetista Andreas Reihse, um admirador de Kurt Dalhke (Pyrolator), Kraftwerk e das bandas que fazem história em Düsseldorf. Mas durante as gravações de “Appearance and the Park” os Kreidler seguiram o “método Can”.
PÚBLICO – “Appearance and the Park” é um título estranho. O parque é o mesmo que aparece na capa do álbum anterior, “Weekend”?
ANDREAS REIHSE – Sim, “The Park” faz o elo de ligação com “Weekend”. “Appearance” assinala o novo e o inesperado, também a distância relativa ao álbum anterior e algo mais de que não tivemos consciência no momento da gravação. O “e” liga o antigo ao novo, jogando com a ausência de lógica. O título procura também captar um certo mistério que paira no ar, como os “Ficheiros Secretos”.
P. – A melodia de “Tuesday” é puro Pyrolator (do ambiente de feira de “Wunderland” não dos experimentalismos de “Inland”). E nas notas de capa agradece ao próprio Pyrolator, ou seja, Kurt Dahlke, cada vez mais citado pelas novas bandas alemãs de música electrónica, dos FX Randomiz aos Schlammpeitziger. Será que ele é o elo, nos anos 80, que faltava entre o “krautrock” dos anos 70 e as actuais vagas do pós-rock e da “Electronica”?
R. – Houve quem se lembrasse de “Could it be I’m falling in love”, dos Spinners... Infelizmente “Wunderland” é o único álbum dos Pyrolator que nunca ouvi. De qualquer forma gosto do modo como ele usa melodias “naive” e um “kitsch” que é muito apelativo, como fazem os Kraftwerk. Mas há mais música importante de Düsseldorf, dos anos 80, como os primeiros Die Krupps e os Der Plan. E Holger Hiller Dorau gravou também nesta cidade. Sob a designação Deux Baleines Blanches nós próprios gravámos várias vezes nos estúdios Atatak. No ano passado gravámos o 12” “Fechterin”, que foi produzido por Kurt. Foi também Kurt que nos enviou um gravador DAT durante as gravações de “Appearance”, depois de três dos gravadores do estúdio em St. Martin terem rebentado!...
A editora Atatak é, de facto, um elo que liga um determinado tipo de “krautrock” ao som de Düsseldorf personificado pelos Kraftwerk e pelos Neu! mas também através de Michael Rother, Cluster e Harmonia, bem como dos grupos de “electronica” actuais. Também é possível perceber reminiscências de Pyrolator na cena tecno de Colónia, de bandas como os Modernist, Bionaut, Ike Ink ou Sweet Reinhard.
P. – Kurt remisturou uma faixa dos Kreidler, em “Resport”. Ficou satisfeito com o resultado total desse projecto?
R. – A princípio não. Porque me sinto mais ligado à música de dança, ao tecno ou à “house”. Teria ficado mais feliz com uma mistura desse tipo. Mas não fui eu que escolhi os autores das remisturas, à excepção de Kurt. Claro que é a minha remistura preferida. Mas acabei por reconhecer que o som está bastante consistente. Talvez não resultasse numa linha mais ortodoxa de música de dança.
P. – O som é mais importante do que a estrutura na música dos Kreidler?
R. – Detlef Weinrich e eu somos os que estamos mais conscientes do som enquanto matéria-prima. Não gostamos muito de samples porque são barulhentos, sujos e demasiado cheios de informação e de História. É muito mais fácil criar um determinado ambiente manipulando o auditor a um nível mais abstracto, jogando com memórias sonoras que se conservam no cérebro. Por isso preferimos sons puros e frios. De maneira a manter uma distância que permita uma possibilidade de acesso ao auditor completamente diferente. Não como um diário, não de uma forma egocêntrica, mas como senso-comum, pop, um modelo.

Método Can

P. – Em “She woke up and the world had changed” parece que os Cluster encontraram os New Order. É um dos aspectos mais interessantes da vossa música, a forma como combinam elementos e influências diferentes num todo que soa completamente original. Compõem em casa? No estúdio? De que modo manipulam os sons e as ideias?
R. – “Au-pair” e “Coldness”, por exemplo, foram trabalhadas em casa no meu Apple. Outras canções foram tocadas primeiro em concertos, durante um ano, numa espécie de remistura de teste, ao vivo, às reacções do público. Antes dessa fase cada um de nós leva para a sala de ensaios um “loop”, uma melodia, alguns acordes, um ritmo, uma ideia para uma linha de baixo. Depois juntamos as partes mas nunca sob a forma de improvisação. Numa última fase separamos as melhores, segundo aquilo a que chamo o “método Can”. Fazemos variações sempre tendo em mente que o resultado final deverá rondar os 4 minutos de duração.
P. – A programação rítmica de “Necessity now” é muito semelhante à de “Trans Europe Express”, dos Kraftwerk. E há sons sintéticos que lembram a fase inicial do grupo de Ralf e Florian. Quando os Mouse on Mars elogiam o álbum “Organisation”, assiste-se a uma revalorização desta fase inicial dos Kraftwerk, em detrimento da fase posterior, iniciada em “Trans Europe Express” que todos elegiam antes como percursora do electro-funk...
R. – O meu álbum favorito dos Kraftwerk é “Menschmaschine” (“The Man machine”) porque dá uma ideia bastante clara do que haveria de acontecer nos anos 80. É frio e cheio de desespero e entropia. Por vezes sinto-me deprimido quando o ouço. Não penso que os Kraftwerk sejam muito “funky”. São muito rigorosos e rígidos, tipicamente alemães, quando os comparamos com Sly & The Family Stone ou Parliament. Aprecio a sua evolução, desde o início até “Electric Cafe”. De certa forma, cada novo álbum é uma actualização do anterior. Não sei se o material mais antigo está agora mais em voga. Há quatro anos atrás, Triple-R., um dj, incluiu no seu “set” de tecno um tema de “Ralf & Florian”.
A propósito, Thomas e eu tocámos recentemente com Klaus Dinger, (Neu!, La Düsseldorf, primeiros Kraftwerk) no Japão, bem como em vários álbuns dos La!Neu?
P. – Concorda que “Appearance and the Park” é bastante mais melódico do que o seu antecessor? Por vezes soa quase aos OMD. Um passo na direcção de uma nova vaga de electropop, talvez?
R. – Bem, preferia que tivesse pensado nos The Normal, nos Human League ou nos New Order... Ou num grupo funk de Nova-Iorque, como os Liquid Liquid. De qualquer forma estamos nos anos 90 e não é nosso propósito sermos uma banda retro.

Haiku de banana

P. – Quem é Banana (!?) Yoshimoto cuja poesia é referida no álbum?
R. – É uma jovem escritora japonesa com um estilo muito fácil de leitura (ok, só conheço as traduções...) mas que é capaz de traduzir sentimentos muito profundos com um mínimo de palavras, um pouco como os haikus. Da mesma forma nos Kreidler procuramos usar sons e melodias o mais puro e simples possíveis para exprimir sentimentos como a saudade e proporcionar algum conforto, aceitando as coisas de uma forma activa e não passiva, tentando transformar as más em algo positivo para o auditor. Algo que também se encontra em “Crash”, de David Cronenberg.
P. – Detlef Weinrich também fala dessa “forma de aceitação das coisas”. Há aí alguma conotação com o zen?
R. – É sem dúvida algo japonês, mas não somos nenhuns budistas!
P. – Curiosamente parece existir uma ligação entre os músicos electrónicos alemães e o Japão. Estou a lembrar-me de Holger Hiller, que tem um álbum inteiro, “Little Present”, feito a partir de sons gravados em Tóquio. Além de que vocês agradecem a uma quantidade enorme de japoneses neste disco...
R. – Conhece “Little Present”! Brilhante! Adoro esse disco. Quando estive com Klaus Dinger em Tóquio recebi-o como presente. Fiquei muito impressionado com a cidade, com os seus sons, as cores, as pessoas, tudo. Não me lembro de alguma vez me ter sentido tão bem (soa um bocado patético, não?). A cidade tem uma vibração ultra positiva (ainda mais patético!...) que não se encontra em nenhum lugar da Europa. Fiquei com uma quantidade de amigos em Tóquio. Mas é uma cidade que transmite igualmente imagens de um desespero muito belo e puro.
P. – E a Itália? O disco tem canções chamadas “Il sogno di una cosa” e “Venetian blind”...
R. – “Il sogno...” é uma frase original de Karl Marx. Pier Paolo Pasolini usou-a como título para um dos seus livros. Por outro lado sinto que existe uma ligação qualquer entre o Japão e a Itália que não consigo explicar.
P. – Insistem em conotar os Kreidler com o conceito de “frieza”. Os novos homens-máquina?
R. – Homens-máquina, nunca! Talvez só por brincadeira é que joguemos com esse género de atitude. Sentimos mais atracção pelo escuro e pelo frio, mas também tem que existir um antagonismo. E, evidentemente, sempre uma espécie de saudade.

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