Carta de Miranda para o Fernando
Publicada no jornal PÚBLICO a 1 de Novembro de 2009Viajens com bolso
por Alexandra Lucas Coelho
Não acredito que os mortos nos ouçam, mas tu acreditavas e eu estou em Miranda.
Hoje vi um poema na parede com o teu nome por baixo. Quando morreste, o Mário Correia, do centro de música de Sendim, ficou sem fala. Depois foi ao livro dos visitantes e emoldurou aquilo que lá tinhas deixado no dia 23 de Julho de 2003.
E assim estás lá, no meio dos discos, dos filmes, dos livros, das 1800 horas de música recolhidas pelas aldeias, e até hoje há uma cadeira vazia no Festival Intercéltico que é tua, diz o Mário. Foi ele que pela primeira vez te pôs uma gaita-de-foles nos braços, que festa.
O país de Lisboa enfeita-se de vez em quando com Miranda, mas aquilo eras tu.
Quantos textos nos mandaste daqui? Quantos concertos da June Tabor, quantos Intercélticos, quanta paixão?
Havia a música, a gente tocava, dançava, comia e bebia. E às tantas tu ias sozinho pelo planalto, ver a lua, ver o rio.
Diante do princípio do mundo que é o Douro em Miranda talvez Lisboa esteja extinta. Ou talvez tudo possa ainda começar.
Nas arribas hoje de manhã era Verão, o rio polido, as pedras quentes. Mas já havia árvores douradas e vermelhas e as folhas dos choupos flutuavam na água.
À hora do almoço fomos comer a posta à Gabriela. As alheiras, de entrada, tinham sido feitas ontem. Provámos compota de figo, abóbora, marmelo, ginja, cereja e pêra.
A Adelaide diz que já ninguém passa fome em Sendim, mas o pastor Lázaro, de Duas Igrejas, contou-nos que um pastor do outro lado do monte se enforcou há dias, deixando oito filhos, porque já não podia com as dívidas.
Ao lusco-fusco, as pedras entre Sendim e Bemposta pareciam grandes animais deitados.
A lua entrou antes do sol sair, quase cheia.
Não vi a casa do teu Sporting, só a do Benfica, e à noite, na televisão, passou o Porto-Belenenses.
Na associação dos pauliteiros em Duas Igrejas poucos olhavam o jogo. Os mais velhos batiam cartas, as raparigas comiam castanhas, os rapazes abriram o salão e fizeram três danças com os paus, incluindo a do salto de cavalo. Estavam cheios de proa por terem ido à América em Junho. Puseram-se a dançar em Times Square com as saias e tudo.
Hoje, domingo, 1 de Novembro, Miranda vai ver os seus mortos, levar-lhes flores, falar com eles. Parece que daqui se ouve melhor.
O Mário contou que quando vocês iam às arribas, ele dizia: “Como somos pequenos.” E tu dizias: “Estás enganado, aqui somos enormes.”
No poema que deixaste em Sendim, há este verso: “E das pedras se faz luz.”
Fazias tu, e era isso que a gente lia.
(Fernando Magalhães, jornalista fundador do PÚBLICO, morreu a 15 de Maio de 2005, aos 50 anos).
1 comentário:
Uma crónica de que muito gostei, e que tive oportunidade de referir no meu espaço. Achei que era tempo de agradecer o que devo a Fernando Magalhães.
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