Sons
29 de Outubro 1999
POP ROCK
29 de Outubro 1999
POP ROCK
Estalo nos miolos
Tone Rec
Coucy-Pack (9)
Sub Rosa, import. Ananana
Já se pode afirmar com segurança: Com os Tone Rec e os Pôle, ou talvez antes, com os Oval e Microstoria, nasceu uma nova categoria de música electrónica (cujos capítulos mais recentes pudemos recentemente presenciar ao vivo, nos desempenhos de Terre Thaemlitz e dos Radian, na primeira noite de concertos do Festival Atlântico) onde são recorrentes o estalido e os ruídos de electricidade estática, a avaria e a interrupção/disrupção, num cruzamento do minimalismo (repetição) com a música industrial (lógica da máquina). Com a diferença de que os ciclos repetitivos lineares dos minimalistas clássicos foram substituídos por uma noção de descontinuidade (fractal) do tempo e de que as máquinas não são já os gigantescos monstros de metal movidos por motores barulhentos, roldanas e rodas dentadas mas computadores ou outros dispositivos digitais (os The Usher, por exemplo, que também virão tocar ao Festival Atlântico, compuseram uma sinfonia para fotocopiadoras) alimentados por software. A música dos Tone Rec representa a vanguarda desta nova estética nos antípodas da música cósmica planante, através de um percurso que começou em “Tone Rec” por se entregar aos prazeres do torturador armado de berbequins cirúrgicos, passou em “Pholcus” pelo alargamento a uma espécie de dor universal e à emancipação de uma arquitectura assente no som residual e em “Coucy-Pack” se abriu em múltiplos quadros onde o sofrimento, se não é menor, tem pelo menos a envolvê-lo a ilusória segurança de uma moldura. Mesmo se essa moldura for de arame farpado. Em vez da disciplina e da agressão dirigidas para a ordem absoluta – em última instância, a loucura do indivíduo diluído na massa – de “Pholcus”, os Tone Rec oferecem-nos em “Coucy-Pack” variantes múltiplas desse rigor infernal, em quartos fechados onde cada um se pode entregar às suas fantasias masoquistas mais íntimas. Caso contrário, só resta aguentar e usufruir deste jardim das delícias armado de uma racionalidade reforçada. “Coucy-Pack” dá mais uma machadada no pós-rock. Cada instrumento, do trio bateria-baixo-guitarra à electrónica mais violenta, é uma equação mal enunciada que, apesar disso, serve de base à construção de uma cosmogonia. O mundo dos Tone Rec é um mundo onde o defeito e o desconforto, e a potenciação desse defeito e desse desconforto, são elevados à condição de leis. “Coucy-Pack” obriga-nos a tomar consciência da nossa imperfeição. Uma vez mais implacáveis, os Tone Rec concedem-nos agora a graça de experimentar formas mais variadas de sentir o ranger dos músculos, o sabor da corrente eléctrica a passar pelos nervos, o apodrecimento do sangue nas veias entupidas. O homem-máquina dos Tone Rec, ao contrário do dos Kraftwerk, é o organismo imperfeito, a forma mal acabada por um demiurgo doente. Ou, se quisermos, a perfeição do mutante. Depois de “Pholcus”, outro manifesto exemplar do mal estar do final do milénio.
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