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15|FEVEREIRO|2002
discos|roteiro
nico mulher fatal
Não fora o contrassenso, diríamos que nunca a música de Nico
soou tão radiante como nesta antologia em que, pela primeira vez, a sua música
foi objeto de remasterização. É que o sol e a luminosidade nunca fizeram parte
do vocabulário musical e existencial da “deusa da lua”, como já chamaram à
ex-modelo, atriz de Fellini em “La Dolce Vita”, amante de Brian Jones, Bob
Dylan, Lou Reed, Jim Morrison e Alain Delon, e cantora no mítico álbum da
banana dos Velvet Underground, que a 18 de Julho de 1988 morreu de um ataque
cardíaco, quando passeava de bicicleta em Ibiza, e que de si própria dizia:
“sou uma completa estranha para mim mesmo”.
“Innocent & vain” arranca com “I’ll keep it with mine”,
do álbum de estreia de 1966, “Chelsea Girl”, mas a novidade é a inclusão de uma
versão alternativa (sem vozes masculinas) de “All tomorrow’s parties”, o hino
com sabor a espumante estragado de “The Velvet Underground & Nico”, de onde
foi igualmente retirado “Femme fatale”, cápsula de amor e cianeto, derradeira
golfada de ar ainda não completamente saturado que Nico respirou antes de se
lançar nas águas gélidas da noite.
Mas se “Chelsea Girl” era ainda a vida, embora já manchada
pela mágoa, e o calor de alguma humanidade, os dois álbuns seguintes, “The
Marble Index”, equivalente musical de uma lápide funerária, e “Desertshore”,
marcado pelo cinema poético-suicidário de Philippe Garrel, apresentavam já o
som gótico e mortuário por que haveria de ficar “conhecida”, com a sua voz
arrancada dos abismos a arder em combustão fria na religiosidade de um órgão de
pedais. Ainda que nenhum destes dois álbuns (por razões contratuais?) contribua
para o alinhamento da presente antologia, o seguinte, “The End” (1974) faz-se
representar por quatro: “You forget to answer”, “Valley of the kings”, “Secret
side” e “Innocent and vain”, exemplos tão gloriosos como trágicos da música em
forma de dilúvio interior de Nico, tornada rainha por breves instantes pela
produção majestosa do seu antigo companheiro nos Velvet, John Cale.
“Innocent & Vain” termina com o tema-ícone daquele
álbum, uma espantosa e descarnada interpretação de “The end”, de Jim Morrison,
aqui curiosamente através da versão ao vivo incluída em “June 1st, 1974”,
litania do fim a contrastar com as canções dos seus companheiros neste trabalho,
Kevin Ayers, John Cale e Brian Eno.
14 anos após a sua morte, 17 após a gravação do seu último
álbum, “Camera Obscura”, a música de Nico continua a petrificar-nos com o que,
a propósito de “The Marble Index”, o jornalista Lester Bangs definiu como “a paixão
escondida por detrás de uma auto-tortura sem sentido”.
NICO
Innocent & Vain
– An Introduction to Nico
Island, distri. Universal
8|10
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