Y 30|JANEIRO|2004
roteiro|discos
the who, a ópera do
cérebro
THE WHO
Tommy
2xCD Polydor, distri. Universal
9|10
“Tommy, can you hear
me?”, o grito, ouvido nos quarto cantos do mundo onde se ouve música rock,
volta a ecoar, passados 35 anos. Tommy, o rapaz cego, surdo e mudo que se
relacionava com a realidade através dos jogos de flippers, nos quais era
imbatível, está de regresso. Agora em formato de super áudio CD (legível também
nos leitores vulgares), em som Surround e aumentado para dois discos. Sujeito a
nova remistura por Pete Townshend, o álbum tem agora a companhia de 17 temas
extra, incluindo “demos” e apontamentos dispensáveis. Lamenta-se ainda, em
comparação com a anterior reedição (em CD simples), a ausência das letras e a
eliminação do grafismo original.
Mas é “Tommy”, a ópera-rock, que renasce das cinzas. Na
altura foi recebida com aclamações de “obra-prima” mas também como uma
exploração chocante da temática do autismo e da violação (numa parte da
narrativa, Tommy, ainda criança, é violado por um tio). “Tommy” é ambas as
coisas, marcado pelo acesso de misticismo de Townshend, na altura influenciado
pelas ideias de Meher Baba (o grande álbum da banda, “Who’s Next”, abriria
mesmo com o tema-dedicatória “Baba O’Riley”).
Sexo, drogas (o ácido, claro, estava-se em 1969…e em
2004, o último número da Mojo dedica 40 páginas ao tema!...), ilusões, traumas,
religião, falhanços e, em última instância, o triunfo e a glória do herói,
metamorfoseado em Messias, refletem as preocupações do líder e guitarrista dos
The Who, para quem a realidade não é percebida exclusivamente pelos sentidos
mas por uma visão interior. “Tommy” é essa viagem de descoberta interior. O
disco teve, aliás, títulos provisórios elucidativos, como “Amazing Journey”,
“The Brain Opera”, “Journey into Space” e “Deaf, Dumb and Blind Boy”. Sofreu percalços.
De grande música derivou para o espetáculo de pacotilha em que Ken Russell o transformou,
ao fazer do tema matéria para o seu filme e, consequentemente, convocando para
a banda sonora uma chusma de estrelas para interpretarem, no filme e no disco,
as personagens idealizadas por Townshend. Esse, porém, é outro “Tommy”,
porventura até mais conhecido.
As 24 canções de “Tommy” são jogadas acutilantes de pop e
rock que integram elementos de psicadelismo (“Christmas”, “Cousin Kevin” ou
“Smash the mirror”, por exemplo, mais do que “The acid queen”, são suficientes
para amolgar o cérebro), melodias de sedução e precisão notáveis e arranjos que
desmentem em absoluto a ideia da ópera-rock ser invariavelmente um amontoado balofo
de exibicionismo de meios e lugares-comuns. “It’s a boy”, “Pinball wizard” e
“I’m free” são as canções mais conhecidas, aquelas às quais as radios e as
memórias se agarraram, mas é a sequência total que impressiona.
“See me, feel me, touch me, heal me” é o pedido de
auxílio, lançado insistentemente pelo deus dos “flippers”. “Tommy”, o disco,
faz o mesmo apelo.
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