POP ROCK
29 de Março de 1995
29 de Março de 1995
VERSIFERO REZENTAL E OS RECHINOS*
O humor e as estratégias do acaso desempenham papéis importantes no mais recente projecto musical de Vítor Rua, os Ressoadores, dos quais acabou de ser lançado, com selo Ananana, o CD “Scratch”. Os Ressoadores são alunos de um seminário de guitarra, leccionado pelo músico dos Telectu, que no ano passado deu origem a um espectáculo ao vivo. “Desta vez, além das quinze pessoas que participaram no seminário, reuni os convidados Paulo Eno, António Duarte e Fernando Guiomar”, diz Rua, referindo-se à gravação, objectivo principal desta segunda fase do projecto.
Pouco vulgar é o mínimo que se poderá dizer dos métodos utilizados para a feitura de “Scratch”, cuja direcção estética é da inteira responsabilidade de Rua. Os títulos, por exemplo, foram escolhidos por Jorge Lima Barreto, que retirou ao acaso de um dicionário palavras com iniciais iguais às dos nomes dos vários participantes. Assim, o tema tocado por José Guilherme chama-se “Júpiter genitor” e o de Nuno Silva, “Nebelina sociauxia”. Encontram-se ainda “Facial galiambo”, “Pingo apotrópio”, “Goliardo favila” e “Oxítono hoje muvuga”, entre outras designações bizarras. “Não foi por pretensiosismo”, garante Vítor Rua, a rir.
Além dos títulos, também o próprio corpo musical surgiu a partir de procedimentos do mesmo estilo. Um dos casos mais “radicais”, segundo o guitarrista, é o tema “Geada flavo”, interpretado por Gonçalo Freitas. Dada a ausência forçada de um dos participantes – necessariamente dezoito,- um para cada faixa -, foi preciso arranjar um substituto. Vítor Rua conta que telefonou para Gonçalo Falcão, guitarrista e produtor executivo do projecto, que trabalha numa empresa de “design gráfico”, dizendo-lhe que “tinha um problema”. “Meio a sério, meio a brincar, perguntei-lhe se não haveria alguém no escritório interessado em participar. Ele levantou o telefone e gritou para trás: ‘Alguém quer entrar num disco?’ Ouviu-se uma voz ao fundo a dizer ‘sim!’. Perguntei o que é que tocava. ‘Assobios!’, respondeu a voz, ainda a pensar que era brincadeira. Assobios? Óptimo! Disse para aparecer no dia seguinte às dez da manhã para fazer a gravação!” E assim foi, com o anónimo executante a ser creditado em “Scratch” com uma “whistle guitar”… “É um dos temas que mais gosto”, concluiu Vítor Rua.
Todos estes episódios constituem, pela atitude, uma forma original de Vítor Rua manifestar a sua discordância de um certo pretensiosismo que, segundo ele, afecta o meio artístico nacional: “Há uns tempos, podia dizer-se que havia grupos de rock português maus e bons. No caso da música improvisada, ou das novas músicas, eram tão poucas as pessoas a fazerem-na – o Zíngaro, Telectu, Miso Ensemble… - que não fazia sequer sentido fazer comparações valorativas. De repente, hoje, qualquer pessoa, sobretudo se tiver um pai rico, grava um disco e, como não tem jeito, vai para a música improvisada. Como não consegue fazer três acordes, já não dá para ir para o rock. Então põe uns paus entre a guitarra, compra três discos do Derek Bailey e está a gravar, com uma teoria qualquer na capa do disco, do tipo a dizer ‘polirritmia’ ou expressões como ‘work in progress’ ou ‘politonalidade’…” Vítor Rua fez questão que “Scratch” não tivesse qualquer texto explicativo, fazendo acompanhar essa ausência de informação com uma estrutura musical onde coabitam os ressoadores, desde principiantes a professores de guitarra. “Quase como se as pessoas, nem todas, fossem um instrumento em si, que eu estivesse a tocar”, diz Rua, assumindo por inteiro a sua condição de manipulador. “A ideia foi criar para cada pessoa, ou cada situação, um eco-sistema metodológico de maneira que pouco importava o que cada um iria fazer. À partida estava tudo pré-determinado.”
* título inventado segundo a mesma lógica de “Scratch”, com as mesmas iniciais de “Vítor Rua e os Ressoadores”.
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