Sons
17 de Abril 1998
17 de Abril 1998
Debaixo da vida
O novo dos Tortoise é bom, o novo dos Trans AM é muito bom, mas o novo dos Ui, “Lifelike”, é fora de série. Aqui se mistura o grande funk com o “dub” e o experimentalismo kraut servido por dois baixos poderosíssimos e o gosto pelo “riff”. O PÚBLICO falou com o “grandmaster” Sasha Frere-Jones e confirmou o que já adivinhara: Os This Heat são os avós do pós-rock.
Demorou um ano e meio a preparar mas valeu a pena esperar por “Lifelike”, o mais recente álbum dos Ui. Mas o pensamento do seu principal mentor, Sasha Frere-Jones, entre recordações vagas de Sun Ra, umas brincadeiras com os Stereolab, a devoção aos This Heat e o espanto por conversar com alguém que ouviu os seus discos, está agora mais voltado para o seu filho de nove meses. É que “há coisas mais importantes do que o rock’n’roll”, como ele próprio admite.
PÚBLICO – Ui é um nome bastante estranho. Tem algum significado especial?
SASHA FRERE-JONES – Tem vários. Há uma peça de Bertolt Brecht chamada “Ascensão e Queda de Arturo Ui”, uma peça antifascista sobre Adolf Hitler. E David Lee Roth, dos Van Halen, gravou um álbum em espanhol em que no meio de todas as canções solta um grito lancinante: “Uuuiii”. Depois as letras “U” e ”I” pronunciam-se “you” and “I” [“tu” e “eu”], exprimem uma relação...
P. – “The 2-Sided EP/The Sharpie”, composto por material antigo, foi recentemente editado em Portugal. À semelhança do que acontece com outros grupos de pós-rock, nota-se que ouviram muito os This Heat. É verdade?
R. – Ah, sim! [solta uma exclamação de prazer]. Aí está uma banda que adoro. É engraçado estar a mencioná-los, ontem mesmo ofereci um disco dos This Heat ao autor do “design” da capa de “Lifelike”, Richard McGuire. E há uma hipótese de tocarmos com Charles Hayward lá para o final do ano. Os This Heat são sem dúvida uma enorme (“huge”) influência.
P. – Cada um destes discos representa uma fase diferente do grupo?
R. – “The Sharpie” foi um “single” gravado há três anos por obrigações contratuais com a Soul Static Sound. “The 2-Sided EP” é mais ou menos dessa altura, já não me lembro bem, foi gravado logo a seguir ao álbum “Sidelong”, que, aliás, já continha parte do que viria a ser “The sharpie”. Era uma altura em que procurávamos fazer temas mais longos para discos de doze polegadas e durante o qual os meus interesses giravam um pouco em torno do “drum’n’bass”. Clem Waldmann, o nosso baterista, toca como um baterista de “breakbeats”, apenas tínhamos que o mandar tocar e depois acelerávamos a fita...
P. – Um pouco mais tarde, em 1995, fizeram uma digressão com os Tortoise e os Labradford, cuja música é bastante ambiental, em oposição à vossa, que é de uma energia por vezes quase brutal...
R. – Eis uma comparação inteligente. É das primeiras pessoas a notar esse lado energético da nossa música, vejo que ouviu os nossos discos, o que não acontece com a maior parte dos jornalistas musicais com quem tenho falado [N.R. - Nesta altura, a nossa perplexidade só era comparável ao estado de dúvida que se instalou relativamente ao jornalismo praticado em terras do Tio Sam...].
P. – Bom, mas como é que conseguiram esse desempenho energético em estúdio, em “Lifelike”? É verdade que demoraram cerca de ano e meio a gravá-lo?
R. – Mais ou menos. Não estivemos esse tempo todo em estúdio mas foi quanto demorou a arranjar e a juntar o material necessário. Houve partes que já estavam feitas desde Junho de 1996, como os metais. Não houve propriamente ao longo desse ano e meio a intenção de fazer um disco. Este acabou por surgir quase por acidente. Mesmo as tais gravações com instrumentos de sopro foram feitas para serem integradas num disco de “drum’n’bass” que tínhamos gravado com os Stereolab em Londres. Outro tema, “Blood in the Air”, destinava-se a uma colectânea da Techno Animal, onde acabou por aparecer com o título “The next feeding”. Em “Lifelike”, nesse tema, uma vez mais, acelerámos a bateria. Só a partir de Maio do ano passado é que comecei a fazer em estúdio, em colaboração com Greg Frey, o engenheiro de som, todo o trabalho de mistura e edição. Senti-me como se tivesse o álbum já todo feito em casa e com o tempo e a liberdade de poder transformá-lo no que quisesse, com “overdubs”, montagens, etc.
P. – Vive em Brooklyn, em Nova Iorque. Não há registos de qualquer ligação dos Ui à cena “downtown” da cidade? Um tema como “News to go farther” tem um balanço muito jazzy...
R. – Essa ligação ao jazz surge sobretudo pelo lado de Wilbo Wright, que já tocou com Marc Ribot. Agora relações do grupo com a “downtown” nunca houve. Também não conhecemos muitos músicos da cidade, mas se conhecêssemos não seriam decerto dessa área, não gosto da música que fazem.
P. – Sob a designação de Uilab, gravaram em colaboração com os Stereolab o mini CD “Fires” onde se incluem quatro versões diferentes de um tema de Brian Eno, “St. Elmo’s Fire”. Houve alguma razão especial para esta escolha?
R. – Foi uma ideia que surgiu quando andávamos em digressão com os Stereolab. Antes de começarmos uma nova digressão pela Europa, arranjámos uma semana para gravar. É uma canção que já tinha na cabeça, discuti isso com eles e acabámos por gravar as versões em Londres. Há outra canção feita de parceria com os Stereolab, com uma secção rítmica composta por Wilbo e Clem que não aparece em “Fires” e que será editada num próximo single.
P. – Em “Fires” aparece também o tema “Impulse Rah”, creditado como uma composição de Sun Ra de parceria com os Ui e os Stereolab...
R. – Só a linha de baixo é que pertence a Sun Ra, ou, pelo menos, soa como se pertencesse a Sun Ra... Acho que faz parte de um dos seus álbuns, não me consigo lembrar de qual. Em todo o caso, achei que devia incluir o nome dele na ficha técnica. [Nesta altura, Sasha cantarolou a tal linha de baixo...]. É sem dúvida de Sun Ra!
P. – “Less Time” é o único tema creditado como Ui…
R. – É um dos meus temas favoritos. Ensaiámo-lo pela primeira vez há muitos anos, na América. Queríamos incluir em “Fires” outra coisa qualquer que fosse diferente e decidimos ouvir as fitas de ensaio. Começámos todos a entoar a melodia! [Sasha volta a imitar a linha de baixo...].
P. – É verdade que os Ui não têm qualquer espectáculo ao vivo programado para os próximos meses?
R. – Acontece que tenho um filho com nove meses e decidi consagrar os tempos mais próximos apenas à família.
P. – Decidiu? É você quem toma as decisões pelo grupo?
R. – Eis uma questão algo controversa... Mas neste caso acontece que os outros membros da banda também têm em casa filhos pequenos para cuidar. Por mais que gostemos todos de tocar ao vivo, achamos que a família é mais importante. Há coisas mais importantes que o rock’n’roll [risos]! O meu filho é uma delas [N.R. – Seguiu-se um interessante diálogo particular sobre os filhos de uns e de outros e os respectivos nomes que acabou por ir dar a João Gilberto, daí que...]. Sou um fã da bossa-nova: João Gilberto, os Mutantes, Caetano Veloso...
P. – Para terminar, fale-nos na sua actividade como DJ, sob o pseudónimo The Calvinist, e da sua própria editora, Bingo.
R. – Toda a gente me pergunta sobre The Calvinist. Não sou propriamente um DJ profissional, acontece apenas que, por vezes, quando saio à noite, ponho uns discos de que gosto a tocar. Em relação à Bingo, é diferente. Os Uilab, por exemplo, foram editados por nós, na América. Também existe uma compilação chamada “The Day my Favourite Insect Died” com grupos de rock alemães da cidade de Waldheim, como os Notwist, a tocarem música electrónica. Vamos lançar a seguir um disco dos The Tie and Tickle Trio e outro de Derek Bailey com uma série de gente a fazer as secções rítmicas e ele a tocar guitarra por cima.
Sem comentários:
Enviar um comentário