30/10/2009

Robert é mais estranho do que Wyatt [Robert Wyatt]

Sons

19 de Junho 1998
REEDIÇÕES

Robert é mais estranho que Wyatt

Robert Wyatt
Rock Bottom (10)
Ruth is Stranger than Richard (8)
Nothing Can Stop Us (8)
Old Rottenhatt (9)
Rykodisc, distri. MVM


“Rock Bottom” é um dos grandes discos da história do rock. Apesar de pouco ou nada ter a ver com o rock. Apesar do título. É uma daquelas obras únicas e irrepetíveis, sem ascendência nem descendência visíveis, ainda que “Shleep”, o mais recente do autor, o revisite, filtrado pela distância.
Corria o ano de 1974. O Progressivo encontrava-se no seu esplendor máximo enquanto na editora Virgin se acolhiam os nomes mais importantes – e que então soavam estranhos – exteriores ao movimento: Henry Cow, Hatfield and the North, Gong, Faust, Gilgamesh, Lady June, Slapp Happy, Tangerine Dream, Klaus Schulze, entre outros.
Robert Wyatt saíra dos Soft Machine logo a seguir à gravação do seu volume “4”, desagradado com a orientação exclusivamente jazzística do grupo. Como já tinham feito antes Daevid Allen e Kevin Ayers, dois dos excêntricos mais iluminados da pop inglesa com sede em Canterbury, ainda que o primeiro fosse australiano. O aviso já fora feito na obra-prima “Third”, onde Wyatt assinava um lado inteiro de pop lunar (ou de lunático) numa longa canção à qual dera o título de “The moon in June”.
Mas para Robert Wyatt (como para Allen e Ayers) a música pop foi sempre encarada como um veículo capaz de transportar e conter todos os desequilíbrios e direcções divergentes da sua personalidade. Nos Matching Mole encontrara o então ainda baterista esse veículo, gravando mais dois álbuns imprescindíveis, “Matching Mole” e o genial “Little Red Record”.
Quando Wyatt preparava o terceiro disco dos Mole (com um novo elemento, o teclista Francis Monkman, vindo dos Curved Air) dá-se o acidente. Uma festa fatídica. A queda de um quarto-andar. Paralisia dos membros inferiores. A noite descia sobre Robert Wyatt.
“Rock Bottom”, o fundo, é também a salvação do músico que faz deste álbum um manifesto da sua dor. A abertura do disco, “Sea song”, é uma luz velada em que a graça se confunde com a mágoa mais profunda numa espécie de ressaca metafísica. O mundo, os sons e a alma do músico desaceleram até ao espanto estremunhado. “When you´re drunk you´re terrific/When you´re drunk I like you mostly/Late at night, you’re quite alright./But I can’t understand/The different you in the morning/When it’s time to play at being/Human for a while/Please smile” canta Robert Wyatt naquela que será uma das mais tocantes letras de canção de sempre. A música é uma neblina de notas de piano e pequenas percussões à deriva, varridos pela ventania da madrugada de um sintetizador. Um limbo de sentimentos molhados pelo sal e pelo álcool que ardem como um sol gelado antes de se diluírem no oblívio. “A last straw” e “Little red riding hood hit the road” prolongam esse estado de incredulidade e folia interior, fora da realidade, no único lugar onde se torna possível suportar, mas não olhar de frente, o sofrimento. Depois é o mergulho na loucura. “Alifib” e “Alife” descem, descem, descem sempre até atingirem o fundo negro onde se reflectem as estrelas do céu. Uma palavra, “alifib” (Alfreda Benge, “Alfie”, a mulher sul-africana com quem casou nesse mesmo ano) vai sendo repetida obsessivamente, a voz desagregando-se aos poucos numa respiração húmida. A lógica desaparece. Wyatt estende as mãos e murmura coisas incompreensíveis onde estão aprisionados todos os sentidos. “Not nit not/nit no not/Nit nit folly bololey”, balbucia. A luz desaparece numa última vertigem para reaparecer no tema final, “Little red Robin Hood hit the road”, através da janela de um asilo. Robert Wyatt, ele próprio e a sua máscara, pode enfim descansar, dobrado na posição fetal. A voz de barítono demente, de Ivor Cutler, declama sobre uma concertina as palavras da redenção. A alma de Wyatt, essa já voava, como a do índio de “Voando sobre um Ninho de Cucos”. E a voz do fundo, do muito fundo, de Cutler, a pôr um ponto final na agonia com uma gargalhada cruel: “Now I smash up the telly and what´s left of the broken phone”. A criança partira para longe. A criança partira o brinquedo.
No ano seguinte, 1975, “Ruth is Stranger than Richard”, dividido num lado “Richard” e num lado “Ruth” (a presente reedição troca a ordem do vinilo original) respira já fora do poço. É um álbum de pedaços soltos, de desperdícios de jazz e música ambiental, com hinos pelo meio, ritmos africanos e uma versão de “Song for Che” de Charlie Haden. Fred Frith, Brian Eno, Mongezi Fesa, John Greaves, Bill MacCormick (ex-Matching Mole) e, sobretudo, o fabuloso saxofonista Gary Windo (já falecido) são alguns dos participantes de um álbum cuja leveza contrasta violentamente com a claustrofobia emocional de “Rock Bottom”.
O regresso à terra das coisas concretas, pela porta da ideologia, acontece com “Nothing Can stop us”, de 1978. Capa verde e vermelha com a estatueta de um operário a enfeitar a dianteira de um Rolls-Royce. Wyatt entrara nessa altura para o Partido Comunista britânico. Mas se este trabalho representa o pensamento de um homem de Esquerda, nele está também presente uma ironia mordaz e uma lucidez que o impede de ser panfletário, em deliciosas cançonetas de intervenção como “Born again cretin” e “Stalin wasn’t stallin’” (gravada pela primeira vez em 1943, pelo Golden Gate Quartet). Ao lado do hino do operariado, “Trade union”, e da canção de luta latino-americana (“Caimanera” e, de Violeta Parra, “Arauco”) encontramos uma fabulosa parceria com Elvis Costello, “Shipbuilding”, uma versão tocante de “Strange fruit” e um momento de obscuridade, “Grass”, assinado por Chris Cutler, cuja costela, também esquerdista, sempre se resolveu, ao contrário de Wyatt, numa arquitectura hermética que começou a ser edificada nos Art Bears.
Ainda marcado pelas preocupações políticas, “Old Rottenhat” livra-se, todavia, da excessiva carga partidária que envolve “Nothin Can Stop Us”. Aqui reencontramos as grandes canções, onde o individual e o colectivo se confundem, num álbum de fôlego marcado pela electrónica e pelas percussões sintéticas. “United states of Amnesia”, “Speechless”, “The age of self”, “The british road” ou “Mass medium” aliam a acutilância das letras (reduzidas ao essencial, em “slogans” coloridos por um humor surrealista) enquanto “East Timor” estende o dedo de acusação sem fazer uso de qualquer espécie de metáforas. Limpo de retórica, densamente povoado de sons e achados melódicos, “Old Rottenhat” é ainda o álbum em que a voz de Robert Wyatt evidencia força, clareza e extroversão, quando antes se refugiava nos círculos impenetráveis do seu “scat” pessoalíssimo. Era ainda a saída definitiva do poço que lhe permitiria entrar nos anos 90, já não como a larva disforme mas como a borboleta que voa em liberdade, em álbuns como “Dondestan” e “Schleep”, de uma vitalidade surpreendente para este homem que, como Orfeu, passou pelo inferno e sobreviveu.
As presentes reedições são remasterizadas (sem que se note uma melhoria espectacular do som). “Rock Bottom” e “Ruth is Stranger than Richard” trazem pela primeira vez impressas as letras. A capa de “Rock Bottom” foi modificada, apresentando agora um novo desenho da autoria de Alfreda Benge, enquanto o enquadramento e as cores de “Ruth” foram ligeiramente alteradas.


NOTA (Sons, dia 26 Junho) – As notas sobre o álbum “Nothing Can Stop us”, de Robert Wyatt, publicadas na passada semana, contêm uma incorrecção e uma omissão. Assim, o tema “Grass” é da autoria de Ivor Cutler, e não de Chris Cutler. Depois, esquecemo-nos de referir um dos temas fundamentais do álbum, a versão de “At last I am free”, de Nile Rogers e Bernard Edwards, dos Chic.

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