Sons
24 de Abril 1998
DISCOS – ELECTRÓNICA
24 de Abril 1998
DISCOS – ELECTRÓNICA
Em transe
Meia-noite. Hora imprópria para expor o cérebro às emanações, benéficas ou venenosas, produzidas na fábrica das fantasias electrónicas. Pós-rock, “krautrock”, ambiental, fusão. Máquinas e homens em simbiose passam a noite agitados pelo transe.
Numa folha de cálculo por picotar desenrolada de uma impressora radioactiva lê-se o nome Tone Rec. São um grupo francês vagamente aparentado com o pós-rock. O primeiro álbum era uma máquina de escrever encravada. O novo “Pholcus” é um portento, a matemática da electrónica elevada a grande arte. Se os Kraftwerk propunham a poesia da máquina, os Tone Rec desenvolvem a mecânica da poesia. É uma sucessão de equações rítmicas lancinantes e de variações bruscas de humor que correm numa auto-estrada de informação sem conteúdo, mas onde os circuitos brilham a abarrotar de energia. O meio é a mensagem. O meio dos Tone Rec é uma rede labiríntica de centros nervosos. A mensagem, o prazer analítico da contabilidade num jorro contínuo de ideias fractais que a cada momento se entrecruzam num jogo probabilístico sem fim. A primeira obra-prima do pós-pós-rock continental. (Sub Rosa, import. Ananana, 10)
Na Alemanha os velhos “krautrockers” continuam apostados em dizer que este tempo é também o deles. Seis destes teutónicos excomungados de Bayreuth – Dieter Moebius (ex-Cluster), Mani Neumeier (ex-Guru Guru), Jürgen Engler (ex-Die Krupps), Chris Karrer (ex-Amon Düül II), Werner “Zappi” Diermaier (Faust) e Jean-Hervé Peron (ex-Faust) – formaram o grupo dos grupos do novo rock alemão. Escolherem para se chamar Space Explosion, e está bem visto. “Space Explosion” é simultaneamente uma supernova em expansão e um ritual de novos primitivos. Na sua obsessão pela batida infinita soam mais convincentes que os La! Neu? E não andam longe do que nesta mesma etiqueta fizeram três dos seus elementos, Moebius, Engler e Neumeier, em “Other Time”. Para os deserdados dos agora monolíticos Faust, os Space Explosion apresentam em pratos limpos a sua clonagem da era jurássica da “industrial kosmische muzik”, algo como uma “bad trip” pelos mundos inferiores do cosmos, um buraco negro no qual escarafuncham até a cabeça derreter. (Purple Pyramid, import. FNAC e Contraverso, 8)
Outro ex-Cluster, Roedelius, o decano do “krautrock”, passa por uma fase de debilidade. O que lhe costuma acontecer com alguma frequência. Na sua veia mais experimentalista consegue ser de um descaramento intrigante. Mas quando, como em “Aquarello”, descamba para as futilidades “new age”, pode ser um enjoo. São as más companhias dos italianos Nicola Alesini (electrónica, programações, sax) e Fabio Capanni (guitarra), a enésima e estafada releitura de Satie pela lente de Roger Eno, os sons sintéticos e acústicos que parecem não combinar uns com os outros. Depois, o saxofone, aqui bem em destaque, é o instrumento mais abstrôncio que pode haver quando se mete a participar nas grandes contemplações cósmicas. Já nos chega Jan Garbarek (o actual...), quanto mais este tal Alesini. (All Saints, distri. MVM, 6).
Nicola Alesini, que na companhia do seu compatriota Pier Luigi Andreone (teclados) reincide na saga de Marco Polo. “Marco Polo 2” tem pouco para dizer. Ao contrário do aventureiro veneziano que no século XIII banhou a Europa em adrenalina, a música compraz-se num acumulado de mercadorias importadas do quarto mundo já gastas por exploradores bem mais atrevidos. Deixou de impressionar este exotismo de pacotilha, onde a produção faz tudo e a criatividade não faz nada. Jon Hassell disse, e bem, o que tinha a dizer sobre este assunto, nas suas “Possible Musics”. A presença nesta viagem morna de outros gazeteiros, como Steve Jansen, Richard Barbieri (dois ex-Japan), Roger Eno, Harold Budd e David Torn, também não leva a novas paragens. A última faixa, em CD-ROM, destina-se aos que gostam de brincar com os computadores. Mas mesmo aí não há muito por onde brincar. (Materiali Sonori, distri. Megamúsica, 5).
Ainda na Alemanha, acastelado na lenda dos Can, Holger Czukay trabalha num meio totalmente electrónico em conjunto com Doc Walker, dos Air Liquide, em “Clash”, composto por duas sessões de improvisação gravadas, respectivamente, em Colónia e São Francisco. O seu querido “dictaphone” e as habituais manipulações de emissões radiofónicas em onda curta encontram em Walker o contraponto formal que nos últimos anos com os Can lhe faltara. O próprio Holger exulta com esta parceria, afirmando que nela reencontrou o mesmo prazer com a criatividade espontânea que lhe proporcionavam os Can na primeira fase da sua carreira. As linguagens da tecno, do “dub” e do “drum ‘n’ bass”, maculadas de ruído e interferências, que já não eram estranhas a “Moving Pictures”, abrem-se agora numa panorâmica cinematográfica de filme negro, o que Czukay já ensaiara em “Movies”, ainda que a manutenção da sua vocação “trance” não deixe muito espaço vago para mais amplas respirações. (2xCD Sideburn, distri. Symbiose, 6)
Respiração ampla e profunda é condição essencial para se soprar com arte num didjeridu, de maneira a empurrar o ouvinte para o estado de transe. Nos lábios e nos pulmões de Stephen Kent está a garantia de uma boa viagem. Em “Family Tree”, o demiurgo do didjeridu ritual recupera num primeiro CD encantamentos extraídos do seu primeiro e fabuloso álbum a solo, “Landing”, ao lado de excertos dos seus projectos Trance Mission, Lights in a Fat City e Beasts of Paradise. O segundo CD é uma longa incursão em três actos para didjeridu solo e sopros “orquestrados”. O zumbido dos deuses. (Intuition, distri. Dargil, 8)
Diferente deste é o zumbido proposto pelos Frontier, um trio de Chicago que em “Frontier 4” nos quer fazer crer que as quatro estações são exclusivamente pertença das abelhas no cio. Em quatro movimentos elaborados a partir de um complicado sistema de “feedback” de guitarras manipulado em circuito fechado (à semelhança do que David Meyers fez sob o pseudónimo Arcane Device), procura-se, ainda neste caso, o transe, à maneira de “No Pussyfootin’”, de Fripp & Eno, só que o lugar onde se chega não é o céu mas a inquietação e a paranóia. (Emperor Jones/Trance Syndicate, distri. MVM, 7).
Os Labradford, pelo contrário, estão em estado de graça. Se o anterior “Labradford” ressacava ainda as dores existenciais de Manchester dos anos 80, o novo “Mi Media Naranja” é o “Dark Side of the Moon” do pós-rock. Totalmente ambiental, obscuro e abstracto, tem contudo a noção exacta do pormenor e do prazer que provoca na psique a descoberta de detalhes escondidos, em pequenos achados sónicos imaginados na mesa de mistura. Sombrio sem ser deprimente, complexo sem ser impenetrável, atraente sem ser fácil, “Mi Media Naranja” dá-se a conhecer como um álbum de sensações aquáticas, um mergulho nocturno nas profundezas de um lago povoado de monstros. Sempre diferentes de cada vez que se mergulha. (Blast First, distri. Symbiose, 8).
Esses mesmos Biosphere, ou o mesmo é dizer Geir Jenssen, assinam a banda sonora de “Imsomnia”. A música paisagística de Jenssen tem a beleza distante das estátuas gregas e dos mares gelados do Norte. Poderia ser parecida com as manchas impressionistas de Brian Eno, se estas não tivessem carne, nem pele, nem órgãos vitais, nem a luz do sol a banhá-las. Na biosfera deste sueco, a enteléquia, a forma pura sem matéria e o motor imóvel de Aristóteles dão-se a escutar em silêncio e profundo pesar, num “requiem” electrónico de sepulcral beleza pelo fim dos dias. (Origo Sound, distri. Symbiose, 8).
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