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1|FEVEREIRO|2002
folk|música
a sagrada família
inglesa
Lisboa
assiste ao concerto folk do milénio.
Martin Carthy, Norma Waterson e a
filha, Eliza. Estão no topo de uma árvore genealógica que desde a década de 60
catapultou os sons da velha Albion para a modernidade.
Único.
Emocionante. Imperdível. Não é preciso que cantem e toquem. Basta que estejam
presentes para os podermos venerar. Norma Waterson, Martin Carthy e Eliza
Carthy vão atuar em Lisboa no Festival das Músicas e dos Portos (amanhã, 21h30,
Teatro Camões). A raiz e o futuro. Representam o que de mais genuíno, e
inovador, tem acontecido na folk inglesa nas últimas quatro décadas.
Norma e Martin têm sido os modelos
para as novas gerações para quem a tradição não se esgota na transcrição, antes
é o retrato de uma cultura que só sobreviverá enquanto souber fazer a
assimilação do passado e a sua renovação.
A ligação entre Norma e Martin
remonta aos anos 60, quando falar de folk era o mesmo que falar de Woody
Guthrie e Pete Seeger e, na sequência dos manifestos destes patriarcas
americanos, travar conhecimento com a canção de protesto de Dylan, Joan Baez ou
Judy Collins. A Irlanda também já tinha os Dubliners e os Chieftains.
Na grande Albion, embora a tradição
fosse mais antiga, as coisas passavam-se de forma mais discreta. Ewan MacColl,
A. L. Lloyd, Cyril Tawney, Louis Killen, Jeannie Robertson, Walter Pardon, Bob
Copper, todos os mestres desdentados, com a voz cheia de musgo, álcool e
sabedoria, cantavam a vida, o mar, o amor e o trabalho, a alegria e a tragédia,
mas poucos os ouviam fora do círculo dos clubes folk.
Com a chegada da sagrada família dos
Watersons fez-se luz. Norma, Lal e Mike Waterson, este último já falecido, e
Martin Carthy tomaram em mãos a missão de moldar a partir dos mitos antigos uma
música apta a ser integrada na atualidade. Música vocal, considerada a mais
nobre da tradição, os The Watersons criaram intrincados jogos “a capella” que,
sem ferir os estilos tradicionais, afirmavam orgulhosamente a diferença da
polifonia. Na era dos Beatles e da pop, a Inglaterra reconquistava o seu rosto
mais perene.
visionários. Mas os Watersons, se
por um lado marcaram uma posição na ortodoxia, em álbuns de um rigor militante
como “Frost and Fire: A Calendar of Cerimonial Folk Songs” (65), “The
Watersons” (66) e “A Yorkshire Garland” (66), abriram, por outro, caminho a uma
aventura que haveria de chamar-se Folk rock. Inventaram-no dois visionários. Um
deles era Martin Carthy, o trovador, que em paralelo com o seu trabalho nos The
Watersons era respeitado pela obra a solo ou em duo com o futuro violinista dos
Fairport Convention, Dave Swarbrick. O outro chamava-se Ashley Hutchings,
tocava baixo elétrico e nutria uma velha paixão: juntar as peças medievais
inglesas “morris” à música rock.
Ashley formou os Fairport
Convention, aos quais se juntaram outros notáveis, o guitarrista Richard
Thompson, a cantora Sandy Denny e Swarbrick, virtuoso do violino. Desta reunião
resultaria a bíblia do folk rock, “Liege and Lief” (69), aos quais se
sucederia, já sem Sandy Denny e Ashley “Tiger” Hutchings, o não menos
importante “Full House”.
Em resposta aos Fairport, Carthy
formou os Steeleye Span. Lá estava de novo Ashley, e outra diva, Maddy Prior.
“Rivais” dos Fairport, os Steeleye Span gravaram clássicos como “Please do See
the King”, “Ten Man Mop or Mr. Reservoir Butler Rides Again”, “Below the Salt”
e “Parcel of Rogues”. Mas uma vez mais, uma inquietação permanente afastou
Carthy e Hutchings da sua criação. Foi assim desde o início, com ambos a
desempenhar a função de agricultores que, após lançarem as sementes, logo
partem em busca de novos terrenos de cultivo.
Ashley Hutchings encontrou o seu
terreno de exceção noutra formação, os The Albion Band, super-banda por onde
passaram os músicos importantes da folk inglesa. Com eles a “morris dancing”
saltou para os palcos do rock, em discos assombrosos como “Battle of the Field”
(76), “The Prospect Before Us” (76) e a “fusão” definitiva, “Rise up Like the
Sun” (78). Graças a Hutchings o mundo reparou em outra cantora sublime, Shirley
Collins.
Shirley gravara já trabalhos de um
purismo extremo, como “Sweet England” (59), “Folk Routes, New Routes” (com Davy
Graham, 64) e “The Sweet Primeroses” (67) antes de passar pelos Albion Band. O
sublime revelar-se-ia nas gravações com a irmã Dolly, pioneiras na simbiose da
folk com a música medieval, no clássico “Anthems in Eden”.
No meio deste tumulto, Norma
permaneceu na sombra, gravando esporadicamente com os The Watersons, com a irmã
Lal e a sobrinha, Maria Knight, em “A True Hearted Girl” (77), ou numa
participação no magistral “The Transports”, a primeira ópera-folk, do malogrado
Peter Bellamy. O resto do clã não esteve parado.
Martin Carthy consolidou um estatuto
que se traduziria numa sucessão de obras-primas, a solo (“Out of the Cut”, 82,
“Right of Passage”, 88), ou com os Brass Monkey, prolongamento dos Albion Band
e dos ignorados Home Service, em “Brass Monkey” (83), “See how it Runs” (86),
“Sound & Rumour” (98) e “Going & Staying”, o melhor álbum folk de 2001.
Lal e Mike assinaram “Bright
Phoebus” (72), e fizeram a solo respetivamente “A Bed of Roses” (1999) e “Mike
Waterson” (77). Entre um e outro, Lal gravou “Once in a Blue Moon” (96), com o
filho Oliver Knight, o álbum mais lunar dos arquivos da folk.
Chegou entretanto a ocasião em que
Norma ressuscitou para a glória. Foi preciso esperar 30 anos até à sua estreia
a solo, “Norma Waterson”. A reação foi unânime: um marco da música tradicional
inglesa. O seu sucessor, “The Very Thought of You”, disco de versões, recebeu
idênticos louvores. Se em “Norma Waterson” e no mais recente “Bright Shiny
Morning” participamos nas núpcias alquímicas de uma música sem idade com uma
voz que o tempo transformou em ouro, as versões de “Love of my life”, os Queen,
“River man” de Nick Drake, “Solid air”, de John Martyn, ou do standard “Over
the rainbow”, da BSO de “O Feiticeiro de Oz” são arrasadoras.
Martin Carthy é o trovador de tempos
imemoriais, Norma é o canto da terra, do ar, da água e do fogo, da Inglaterra
inteira. A sensibilidade levada ao grau mais elevado é o que iremos receber
desta mulher de 62 anos que a revista Mojo considerou “a melhor cantora inglesa
viva”. Não terá sido fácil à filha arcar com o prestígio dos progenitores, mas
Eliza Carthy encontrou o seu lugar. Primeiro sob a tutela dos pais e a sigla
Waterson: Carthy, nos álbuns “Waterson: Carthy” (94), “Common Tongue” (96) e
“Broken Ground” (99), antes da emancipação. De parceria com outra violinista,
Nancy Kerr (“Shape of Scrape”, 95), ou com a sua banda, Kings of Calicutt, em
“Heat, Light and Sound”, “Red Rice” e “Angels & Cigarettes”, em que a
transgressão é completa. Uma fusão de folk, jazz, pop e hip-hop animada pelo
mesmo espírito que, três décadas antes, levou o pai a tirar a folk do baú
bolorento onde estava abandonada.
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