Y
1|FEVEREIRO|2002
space
rock|música
O rock descolou nos anos 60 e ainda
não aterrou.
Guitarras e sintetizadores planam
entre galáxias e neurónios.
Em Portugal, os astrorockers
habitam em Saturnia.
pedras no
espaço
Quando o cérebro incha, a música
pede uma casa maior. Foi isso que aconteceu nos anos 60 e 70, quando o
psicadelismo, alimentado a quantidades mais do que razoáveis de LSD, obrigou a
tirar novas medidas ao espaço e ao tempo. Kubrick realizou “2001 – Odisseia no
Espaço”, a mesma “space oddity” que fez com que David Bowie se perdesse no
vácuo… Além de Bowie, muitos músicos embarcaram no filme. “Space is the place”
apregoava o jazzman alienígena Sun Ra, líder de uma Astro Intergalactic
Infinity Arkestra e navegador anarca, a bordo do sintetizador Moog, dos espaços
mais obscuros da música improvisada. Ainda no jazz, John Coltrane alimentou a
sua alma de estrelas e cometas. Ele próprio o sol de um sistema solitário. O
rock nem sequer precisou de bilhete – teve sempre a cabeça fora do lugar.
O
ácido lisérgico faz com que tudo se passe mais devagar e com cor. As faixas dos
LPs esticaram de duração. As emanações eletrónicas dos sintetizadores Moog,
A.R.P., VCS3 ou SEM, naves espaciais para a mente, a par do arsenal de
distorções proporcionados pela guitarra elétrica, como foram revelados ao mundo
por Jimi Hendrix, contribuíram para fazer vibrar os neurónios dos músicos das
décadas do psicadelismo e do rock progressivo, em frequências desfasadas da pop
e do rock mais convencional.
O
“space rock”, firmamento sónico suficientemente vasto para albergar fantasiosas
viagens, explodiu como uma supernova. Em Londres, em clubes como o U.F.O., onde
os Pink Floyd e os Soft Machine alucinavam graças à droga, à loucura de rapazes
digamos que fora do normal, como Syd Barrett e Daevid Allen, e a shows de luzes
que iluminavam as paredes e as cabeças de arco-íris. Por essa altura já a
guitarra em chamas de Hendrix voava em direção aos locais mais escuros do
firmamento, até se volatilizar num buraco negro.
Na
costa Oeste dos EUA, onde a trip avançou com maior rapidez, tornada movimento
sociocultural nos “love ins” ou nas desvairadas sessões de “acid rock” levadas
a cabo em São Francisco com a presença de bandas como os Grateful Dead e
Jefferson Airplane, e a tutela do papa do LSD, Timothy Leary. O espaço
tornara-se “o lugar”. Um lugar que, na Alemanha, se estenderia até mais longe.
Foi um ditador iluminado, Rolf-Ulrich Kaiser, patrão da editora Ohr (“ouvido”),
o impulsionador da viagem.
Rolf-Ulrich
Kaiser, a quem Julian Cope (na foto) – ex-Teardrop Explodes, “acid head”, um
dos genuínos psicadélicos do milénio, autor de uma obra incendiária de rock e
visionarismo – chama simplesmente “Kaiser”, no seu livro sobre krautrock,
“Krautrocksampler”, criou os conceitos da “kosmische musik” (“música cósmica”)
e “kozmisch couriers” (“carteiros cósmicos”). A Ohr foi uma janela aberta por
onde passaram, quais Peter Pans empanturrados de ácido, espaçonautas como Klaus
Schulze, Ash Ra Tempel, Mythos, Agitation Free, Annexus Quam e Wallenstein.
Destes, os Ash Ra Tempel e os Wallenstein foram os que conseguiram manter a
cabeça ao mesmo tempo no rock e no espaço.
carteiros
cósmicos. Os Ash Ra Tempel eram o templo. Manuel Göttsching e Klaus
Schulze, os sacerdotes. Como o LSD fornecido pelo “kaiser”, partiram para uma
“trip” que Cope, no seu livro, considera “assustadora”. Os Ash Ra Tempel
colaram os fundamentos do rock e os blues à eletrónica mais “out”, em
intermináveis improvisações que, na versão completa, o patrão da Ohr editou em
quatro álbuns assinados pelo coletivo The Cosmic Jokers. Enquanto Ash Ra
Tempel, o grupo lançou cinco álbuns em que a “desbunda cósmica” adquiriu
contornos de loucura (o baixista, Hartmut Enke, viria a ficar preso no “lado de
lá”…): “Ash Ra Tempel”, “Schwingungen”, “Seven-up” (com Timothy Leary, “the
acid priest”), “Join inn” e “Starring Rosi”. Não se explica a dimensão desta
trip por palavras.
Ainda
mais alto, Kaiser e os Ash Ra Tempel subiram aos Alpes para gravar com o poeta
suíço Sergius Golowin “Lord Krishna von Goloka”. Outro álbum mítico, “Tarot”,
conta com a presença do mago cigano Walter Wegmuller que desenhou um baralho
inteiro de cartas Tarot para acompanhar o disco.
Sobreviveram
ao cataclismo os que conseguiram sobrepor as suas qualidades de músicos à
ousadia das explorações lisérgicas: Manuel Göttsching, o guitarrista mais
planante do mundo, Klaus Schulze, um dos pioneiros da eletrónica cósmica, autor
de uma vastíssima discografia onde longuíssimas paisagens de sintetizador se
fundem com o romantismo de Wagner, e Harald Grosskopf, baterista dos
Wallenstein, a segunda banda mais importante do “space rock”. Em França,
Richard Pinhas, com os Heldon, e Cyrille Verdeaux, com os Clearlight,
destacaram-se de uma plêiade de bandas que pesquisaram o firmamento (Pôle, ose,
Lard Free…). Foi assim, até ao “crash”.
O
regresso à Terra foi duro. O punk chegou para apagar a luz. O espaço encolheu.
As estrelas foram tapadas com ferrugem. A viagem terminou na lama, nas
guitarras mal tocadas, no assassínio dos sintetizadores. O ácido coalhou e foi
trocado por anfetaminas e heroína. Deixou de haver espaço para visões.
Foi
preciso esperar 20 anos para que a nave voltasse a descolar. Começou na tecno,
subiu pelo “trance” e desapareceu de vista com o pós-rock. O espaço é novamente
um bom lugar para se estar, habitado pelos Stereolab, Biosphere ou Gorky’s
Zygotic Mynci. E ao ouvirmos Cope cantar em 1996 “Spacerock with me”, como um
hino de libertação do rock ‘n rol, percebe-se que hoje, como na mítica saga de
Kubrick, o limite é o infinito.
15
viagens The Byrds: Fifth Dimension (66) •
Pink Floyd: A Saucerful of Secrets (68) • Amon Düül II: Yeti (70) • Guru Guru:
U.F.O. (70) • Hawkwind: X In Search of Space (71) • Ash Ra Tempel: Schwingungen
(71) • Wallenstein: Blitzkrieg (72) • Khan: Space Shanty (72) • Agitation Free:
2nd (73) • Kingdom Come: Journey (73) • Gong: You (74) • Cosmic Jokers: The
Cosmic Jokers (74) • Clearlight: Clearlight Symphony (75) • Julian Cope:
Interpreter (96) • Stereolab: Emperor Tomato Ketchup (96)
The
dark side of saturnia
“Space rock” à portuguesa tem um
nome: Saturnia. Projeto de Luís Simões e Francisco Rebelo do qual foi editado
há pouco o segundo álbum, “The Glitter Odd”, é, de acordo com Luís Simões, uma
“mistura de coisas super contemporâneas, eletrónica, psicadelia e ‘head
music’”. Primeiro aspeto curioso: saiu numa editora neo-zelandesa, depois de
uma crítica ao disco de estreia publicada na revista “Progression”. Há
promessas de edição em selo português mas, por enquanto, quem o quiser adquirir
sem ter o incómodo de se deslocar até ao continente australiano, poderá fazê-lo
através da internet, com o endereço www.cronium.co.nz.
Mais personalizado e “dark” que o
álbum anterior, “The Glitter Odd”, liberto da nave Hawkwind, não dispensa o
zumbido psicadélico dos Pink Floyd, ainda sintonizados em LSD, do álbum
“Ummagumma” e o odor agridoce e as emissões telepáticas dos Gong. Aliás, é um
gongo que figura em lugar de destaque na capa do álbum e é um gongo que ressoa
na última faixa, “The Glitter Odd”, uma das mais tripantes – “até à data, o
tema mais experimental dos Saturnia, relacionado com a ‘musique concrète’
[N.R.: música concreta, como foi teorizada e posta em prática pelo compositor
francês Pierre Schaeffer], mas também com os Tangerine Dream, da fase ‘Zeit’”.
Luís Simões paira numa dimensão
alguns degraus acima da consciência normal. Fala em “atmospherics”, “pássaros”
e “ambientes espaciais”, a propósito da faceta mais floydiana de “The Glitter
Odd”. Um tipo de sonoridades que cada vez mais está a ser recuperado por bandas
contemporâneas, como faz notar. É o lado mais “etéreo” dos Saturnia que, com o
groove do “ambient tecno” e do “trance”, se traduz no apelo da dança – “da
cabeça, claro!”.
Embora ache legítima a opinião dos
que o acusam de saudosista, Simões não se preocupa. Tudo depende da forma de
compreender os “lapsos do tempo” e como estes se coadunam com os aspetos
“musicais” e “socio-musicais”. No fundo, “os anos 60 são uma coisa
perfeitamente atual, historicamente aconteceram apenas há uns minutos…”.
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