PÚBLICO 4 JANEIRO
2003
JAZZ
2002
>> Balanço do ano
2002 foi ano de grande jazz em português. A
nova editora Clean Feed deu o mote, lançando para o caldeirão dois clássicos
instantâneos, com as assinaturas de Carlos Barretto e Bernardo Sassetti. Lá
fora, o "free", o "pós-free" e o que virá a seguir
rivalizaram com manifestos de afirmação por alguns dos clássicos eternos, num
ano que foi também de boas reedições. À frente de todos pusemos o disco, dos
Spring Heel Jack, que mais tem dividido as opiniões. Prova de que, afinal, o
jazz conserva intacto o dom de provocar.
01
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Spring
Heel Jack Amassed (Thirsty
Ear, distri. Trem Azul)
Saído das mentes distorcidas, mas livres e
visionárias, de dois homens que não faziam parte do jazz – John Coxon e Ashley
Wales –, "Amassed", depois do ensaio prévio que é "Masses",
revolucionou os parâmetros do jazz eletrónico, samplando o que, no passado,
pertencera ao domínio do analógico nas visões orquestrais de George Russell ou
nas pulsações barrocas do "Synthesizer Show" montado por Paul Bley e
Annette Peacock, numa catedral de alucinações que serve de suporte à "free
music" remodelada em espiral de loucura por alguns dos seus expoentes –
Evan Parker, Han Bennink, Paul Rutherford, Matthew Shipp e Kenny Wheeler. Se
até o "bebop", por altura da sua génese, foi considerado o "fim
do jazz", e Coltrane vaiado como uma farsa, como não conceder igualmente
aos SHJ essa suprema honra de provocar em doses iguais a paixão e a repulsa?
02
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Gianluigi
Trovesi Dedalo (Enja,
distri. Dargil)
Celebração orquestral com a WSR Big Band
alemã, Markus Stockausen (trompete), Fulvio Maras (percussão) e Tom Rainey
(bateria), "Dedalo" recupera o clássico "From G to G",
remontado-o num labirinto onde se cruzam os caminhos do "vaudeville",
Zappa, Ellington, Gil Evans, Don Ellis, jazz progressivo e jazzrock, moídos,
destilados e incendiados por uma imaginação delirante. O homem é um feiticeiro.
03
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Dave
Holland Big Band What Goes Around (ECM, distri. Dargil)
Alguma da música "antiga" deste
notável contrabaixista é aqui tornada matéria de novos "standards"
pessoais, em formato de "big band" a dar mais volume e cor ao
habitual quarteto que tem acompanhado Holland nas suas últimas realizações para
a ECM. Enriquecimento e desafio numa proposta de criação de um território
instrumental onde leitura, arranjos e improvisação se confundem.
04
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Carlos
Barretto Trio Radio Song (ed. e distri. CBTM)
Enquanto solista, voz dialogante ou peça de
suporte, Barretto confirma a maturidade e a segurança dos seus recursos técnicos,
num álbum de múltiplos matizes que conta com a mais-valia do músico francês
Louis Sclavis.
05
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Bernardo
Sassetti Nocturno (Clean
Feed, distri. Trem Azul)
Gravado em ambiente de "verdadeira
magia" na Quinta de Belgais, "Nocturno" é uma incursão impressionista
nos meandros mais íntimos do piano. Como Bill Evans, Sassetti cria a partir da
célula e a partir dela inventa a noite.
06
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Wayne
Shorter Footprints Live! (Verve, distri. Universal)
Trata-se, por incrível que pareça, do primeiro
álbum ao vivo deste notável executante dos saxofones tenor e soprano, antigo
"sideman" de Miles e cabeça falante dos Weather Report. Impressiona a
energia e o lirismo de uma música que alia a investida inquisitiva a uma
delicadeza sem limites. Uma pegada impressa com a força de um
"statement".
07
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Joe
Giardulo, Joe McPhee, Mike Bisio, Tani Tabbal Shadows
and Light (Drimala, distri. Trem Azul)
Um lento avolumar de tensões e incandescências
em que o jazz "apodrece", para das suas cinzas se erguer a fénix
renascida. O tenor de McPhee gasta-se, corrói, cria andaimes e poços. Giardulo
é o nevrótico de serviço. "Shadows & Light" tenta apanhar o além,
o dia seguinte ao da catástrofe. E consegue.
08
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Roscoe
Mitchell & The Note Factory Song for My Sister (Pi, distri. Trem Azul)
Aos 62 anos o multinstrumentista prossegue os
estudos fora da selva de mitos dos Art Ensemble of Chicago. Numa conjugação
mais formalista do "free" (abrangendo mesmo uma faceta didáctica) com
os rituais remanescentes dos AEC, a música ganha alento numa imensa viagem
pelos limites do jazz.
09
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Branford
Marsalis Footsteps for our Fathers (Marsalis Music, distri. Trem Azul)
Cruzamento, ou não, como alguém disse, entre
"um 'cartoon' de Disney e um pregador evangélico", o sopro de
Marsalis aventura-se em refazer a totalidade de "The Freedom Suite",
de Sonny Rollins, e "A Love Supreme", de Coltrane. Sobrevive
incólume. Mais: acompanha o espírito daqueles dois génios.
10
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Andrew
Hill A Beautiful Day (Palmetto,
distri. Trem Azul)
Sessão ao vivo no Birdland na companhia de
Marty Ehrlich e uma "big band", "A Beautiful Day" é um dia
perfeito na mais recente produção pianística de Hill, um dos eleitos que soube
unir o bop à vanguarda.
11
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Mark
Dresser Trio Aquifers (Cryptogramophone,
distri. Sabotage)
"Aquifers" faz a transcrição musical
dos fluxos de água subterrâneos que fertilizam o planeta.
"Acumulação", "trânsito" e "libertação" funcionam
como metáforas telúricas da circulação de frequências, modulação de timbres e
planificação de texturas assimétricas cuja energia parece provir, de facto,
dessa matriz aquática que alimenta a Terra.
12
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Billy
Cobham The Art of Three (In & Out, distri. Dargil)
Surpresa, ou talvez não, esta categórica
afirmação da arte do trio piano-baixo-bateria pelo baterista jazzrock que,
depois da aprendizagem com Miles, ajudou a criar o mito Mahavishnu Orchestra.
Tem a seu lado comparsas de luxo: Ron Carter, no baixo, e Kenny Barron, no
piano, este último um prodígio de subtileza e capacidade de voo.
13
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Mat
Maneri Sustain (Thirsty
Ear, distri. Trem Azul)
Mais ferrugem da boa. Outro prego cravado no
crâneo do "mainstream". Discípulo de Ornette e Stuff Smith, Maneri
arranca com o seu violino a carapaça à música improvisada em aliança perigosa
entre electrónica, jazz vertigem e uma permanente dialéctica entre o silêncio e
o caos.
14
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Charles
Lloyd Lift Every Voice (ECM, distri. Dargil)
Lloyd, o asceta encantado pelo budismo, deixa
atrás de si um rasto de paradoxos. Desde sempre arreigado a uma visão mística
da música, "Lift Every Voice" perdeu entretanto o grito libertário
dos primórdios, para se concentrar em mantras e no Grande Espírito onde ardia
John Coltrane.
15
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Tom
Harrel Live at the Village Vanguard (Bluebird, distri. BMG)
Eleito em 2001 pela "Down Beat"
"compositor do ano", Harrell distribui vitalidade, clareza e
extroversão. A sua trompete, iluminada pela tradição de Blue Mitchell e
Clifford Brown, não ilude porém uma tristeza que em "Where the rain
begins" lateja como uma ferida mal sarada.
Discos de 2001 ouvidos em 2002 merecedores de
figurarem no top:
Dave
Douglas Witness (RCA,
distri. BMG)
Dave
Holland Not for Nothin' (ECM, distri. Dargil)
James
Emery, Joe Lovano, Judi Silvano, Drew Gress
Fourth World (Between the Lines, distri.
Ananana)
Louis
Sclavis L'Affrontement des Prétendants (ECM, distri. Dargil)
Myra
Melford & Marty Ehrlich Yet Can Spring (Arabesque, distri. trem Azul)
Steuart
Liebig Pomegranate (Cryptogramophone, distri. Sabotage)
REEDIÇÕES:
Ella
Fitzgerald Whisper Not (Verve, distri. Universal)
Gerry
Mulligan Village Vanguard (Verve, distri. Universal)
John
Coltrane Legacy (Impulse,
distri. Universal)
Nina
Simone Nina Simone and Piano! (RCA, distri. BMG)
Paul
Bley, Jommy Giuffre, Steve Swallow The Life of a
Trio - "Saturday" e "Sunday" (Owl, distri. Universal)
Sam
Rivers Crystals (Impulse,
distri. Universal)
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