Y 10|JANEIRO|2003
neon|nick
cave
Nick
Cave
I’m
on fire
Baladas
criminosas, ternura e rock'n'roll. A noite e o fogo, no regresso em força do
melhor Nick Cave de há muitos anos. Respirem fundo e vistam fatos de amianto
antes de ouvirem "Nocturama". Sai no princípio de Fevereiro.
Foi
um emocional, um gritador, um sofredor, um mal-encarado e um mal-amado do rock
na época dos The Birthday Party. Depois, já com os Bad Seeds, Nick Cave
virou-se aos poucos para "o outro lado", descobrindo formas no
silêncio onde antes se enredava no torvelinho do ruído. Há quem diga que se
voltou (aparentemente) para cima, numa inquietação surda onde alguns descobrem
devoção. A verdade é que a partir dos anos 90 e de "The Good Son",
gravado em São Paulo, Brasil, o "crooner" maldito estabeleceu um
compromisso com uma religiosidade expressa em tipologias como o
"gospel", os espirituais, de acordo com uma forma dolorosa de
dilaceração interior, queimada como caramelo venenoso nos "blues".
Cave tornou-se o asceta noturno, o
pregador perdido nas caves (nunca um apelido terá soado tão apropriado...) da
perdição que interroga a eternidade no fundo de um copo de "whisky"
ou no mais profundo gemido de uma prostituta sagrada. Álbuns como "Henry's
Dream" (1992), "Let Love in" (1994), "The Boatman's
Call" (1997) e "No More Shall we Part" (2001), bem como o livro
"And the Ass Saw the Angel" e o exercício sangrento "Murder
Ballads" (espécie de "Do Assassínio como uma das Belas-Artes",
de Thomas de Quincey, em canções, que inclui "Death is not the end",
de Dylan) são interrogações dirigidas a uma força oculta que o músico
australiano localiza dentro de si: "Ao escrever tento, de algum modo, compreender-me
a mim próprio. É a única maneira que tenho para compreender o que penso e o que
sinto sobre as coisas.
fauna lunar. "Nocturama",
o novo álbum, com data de edição em Portugal marcada para 3 de Fevereiro, é
mais uma etapa no caminho da crucificação. Que é seguir por dentro em todas as
direções, ser-se simultaneamente santo e pecador, misturar a pureza com a
escória e saber distingui-los. Ou então descobrir que não existe maior
dilaceração que a do amor. "Nocturama" é, segundo o australiano, "um
local onde vivem animais noturnos". Precisamente - o amor. O seu lado
escuro, selvagem e lunar.
Formalmente, os Bad Seeds alcançam
aqui maior protagonismo do que nos álbuns anteriores. Cave explica as
diferenças de um método em relação ao qual foi determinante o trabalho do produtor
Nick Launay - com quem já colaborara no single de 1981 dos The Birthday Party,
"Release the bats" - ao permitir a gravação de todas as sessões e
deste modo criar em estúdio uma atmosfera de empatia e descontração entre os
músicos.
Mas o semeador do mal também mudou:
"A ideia foi anular alguns preciosismos e regressar a um tipo de disco
mais parecido com os antigos, mais rápido e espontâneo. Neste disco optei por
estabelecer uma ideia musical, encontrar uma letra, pô-los de lado para gravar
e começar logo outro tema. Não procedi a qualquer tipo de reflexão posterior ou
voltei a tocar cada canção. Uma vez escritas, ficaram prontas, ao passo que em
'No More Shall we Part' tinha arranjado tudo antes o que, provavelmente, terá
inibido um pouco a banda. Se já está tudo completo e a única coisa que eles têm
que fazer é reproduzir o que está feito, isso não lhes deixa muito espaço para
respirar. Neste novo disco, pelo contrário, ficaram com bastante mais
liberdade." O que faz de "Nocturama" um disco de rock 'n'roll,
soprado pelos fantasmas poéticos de W. H. Auden, Thomas Hardy e Dylan, com
insuspeitas ligações a rockers como John Cale e David Bowie. Ou tratar-se-á,
ainda e sempre, de ilusões?
santos e pecadores.
"Nocturama" abre com "Wonderful life", "pastiche"
em tons de sarcasmo, do verso da canção com o mesmo título, para amansar os
corações, de Black. "Sometimes our secrets are all we've got". O
resto do álbum vai-os desvelando, um a um.
"He wants you" é hino com
ecos de John Cale. Sinistro. O papão que se esconde nas profundezas, pronto a
atacar. "Under the bridge and into your dreams he soars/While you lie
alone in that idea-free sleep of yours/That you've been sleeping now for years.
"Ainda mais parecida com o
registo baladeiro de Cale (basta substituir o "L" por um
"V", apetece dizer...) e a doce indolência de quem se abandona,
"Right out of your hand" fala dos equívocos do amor. "Please
forgive me/If I appear unkind/But any fool can tell you/It's all in your mind."
Convém não esquecer.
Um violino e o andamento inicial de
"reggae" introduzem "Bring it on", parceria vocal com Chris
Bailey, da pioneira banda punk australiana The Saints, que Cave considera
"uns deuses": "uma banda anárquica e violenta mas com um cantor
que sabia mesmo cantar!". "Bring it on/Every neglected dream/Bring it
on/Every little scheme/Bring it on/Every little fear/And I'll make them
disappear". Sonhos traídos. Na rádio poderia resultar bastante bem.
"It's only rock 'n' roll, but I
like it" seria legenda apropriada para "Dead man in my bed",
onde a guitarra de Mick Harvey explode em gloriosa e maníaca cavalgada. "He
used to be so good to me, now he smells so fucking bad/There is a dead man in
my bed." Metáfora ou algo de mais frio, é outra história sem final feliz.
"The cops are hanging around
the house/The cars outside look like they've got the blues [belo verso!]/The
moon don't know if it's day or night." Crime! - Disse ela. Numa balada das
mais tristes e mais belas de "Nocturama". E um piano - de Cave - a
chorar.
"There is a town" é uma
viagem "under a dark sky", através dos sonhos, até aos lugares da
infância que não existem senão no que com elas faz a imaginação. "That God
lives only in our dreams" já é outra questão, mas impossível deixar de
notar que "God" vem escrito com maiúscula. O violino de Warren Ellis
parece, de facto, vir do céu.
Outra declaração de amor, outra
travessia da noite, mais uma viagem pelo mar: "Rock of Gibraltar". Épica.
"And together we'd be/That great, steady Rock of Gibraltar". Substitua-se
a letra por "We'd be heroes", ouça-se o som e as notas - praticamente
iguais - da guitarra por detrás do refrão e, não há que enganar, Cave travou-se
de razões com os "Heroes" de David Bowie.
O violino retorna, cheio de ternura,
a "She passed by my window", outra das baladas de
"Nocturama". Clássica, lenta, invernal. "You gotta sanctify my
love." É preciso dizer mais?
A fúria maior faz-se esperar mas
quando chega é para matar. Em "Babe, I'm on fire", também disponível
em vídeo, em versão ao vivo. Os Bad Seeds soltam neste tema, absolutamente
espantoso, de 15 minutos, todo o rock e energia contidos antes, antes do
dilúvio. Tocada apenas uma vez antes de ser gravada é, nas palavras de Cave,
"o género de canção que se escreve quando não se está a escrever uma canção".
Um órgão Hammond em groove contínuo
de R&B com as guitarras de Harvey e Blixa Bargeld a dançar em volta como
"banshees" alucinadas suportam como possessos um extenso poema
(houve, mesmo assim, versos que ficaram de fora...) que finalmente dispara as
palavras sem as cobrir de sombras. O pai, a mãe, a irmã, o irmão, o cavalo, o
porco, o juiz, a freira, o Papa, o general, o soldado, o toxicodependente, o
bêbedo, o budista, o "rastafari", o cristão, o beatnik, o cego, o
polícia, o chulo, o estripador, o cantor country, o comentador desportivo, o
viking, o cowboy no rodeo, o velho esquimó, o contorcionista chinês, o
astronauta perdido, Picasso e o seu "Guernica", Walt Whitman, Bill
Gates, o Presidente dos EUA [a lista é interminável], todos, absolutamente
todos, gritam: "Babe, I'm on fire!"
"And the decomposing lover
says": "Babe, I'm on fire." A fogueira alastrou num incêndio.
"Babe, I'm on fire" espanta todas as criaturas noturnas e evasivas
que rondavam pela floresta à espreita de um momento de fraqueza. Não há. E
"Nocturama" ilumina-se num clarão.
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