Y 20|JUNHO|2003
música|uhf
Nos 25 anos de carreira, um auto-retrato em
forma de ópera-rock. António Manuel Ribeiro, Joad, numa viagem que se inicia no
rock e não se sabe como termina. “La Pop End Rock”.
cavalos de corrida
2003 não é boa altura para se fazerem
óperas rock. Aconselha a prudência a que se apague, pelo menos, o termo
“ópera”. Os UHF fizeram ouvidos de mercador e foram para a frente com o seu último
projeto, uma “ópera rock” intitulada “La Pop End Rock”, lançada – oh, heresia!
– em duplo CD, com um rótulo a assinalar 25 anos de carreira.
Os
UHF podem não ser o grupo mais sofisticado do mundo mas serão, e sobre isso
haverá poucas dúvidas, um dos mais coerentes e corajosos. Sempre fizeram o que
achavam que deviam ser feito, sem olhar a preconceitos nem se deixando levar
pelos ventos da moda. “La Pop End Rock” é, segundo os próprios, uma “obra
ficcionada sobre a carreira oficial e a vida não documentada dos UHF”.
Ficcionada ou não, as letras e as notas informativas sobre cada tema, que podem
ser lidas no “livrete” fornecido independentemente (não cabia na caixa de
plástico) do CD, remetem para ou descrevem episódios nos quais é difícil não
descortinar peripécias e personagens reais que atravessaram a vida do grupo.
António
Manuel Ribeiro (AMR) é Joad, o herói, como Peter Gabriel o fora, com o
pseudónimo Rael, em “The Lamb Lies down on Broadway”. As restantes personagens
incluem uma fada, Ana, um crítico, um fã, o velho pastel, Shi, um dealer, o
agente e duas groupies. E um coro (personificado num “grito de mãe”, no “homem
da garagem” ou na “voz da serpente”), que a intervalos sublinha ou antecipa a ação,
proclamando em registo épico: “genial”, “hospital”, “anormal”, “tribunal”. O
tema de abertura, “Nascer/Os Primeiros acordes”, conta com a intervenção de uma
orquestra sinfónica e, lá mais para a frente, é possível escutar-se naipes de
cordas, além das guitarras de António Côrte- Real, o piano e Jorge Manuel Costa
e, claro, a voz, mas também os sintetizadores, de AMR.
Ao
todo são 35 histórias/episódios/fragmentos, em registos que vão do confessional
ao descritivo, do esoterismo místico dos contactos com uma misteriosa fada ao
realismo exacerbado da vida na estrada – “Mais frango, não”, brada AMR em “Uma
história com (a)gente”. Histórias que falam da droga, do álcool, da noite, da solidão,
das ressacas, do desencanto, da desistência, do abandono e da reconciliação. De
amores passageiros e amores que deixam marcas para sempre. Encontros e
separações. Glória e rotina. Da alegria e das pulsões suicidárias. Dos palcos,
das terras por onde se passa até se lhes esquecer os nomes, e dos hotéis. Dos
críticos e de canções. Dos putos – os fãs, todos “número um”. Da raiva, de
quimeras e de guitarras elétricas. De Joey Ramone. Do rock‘n’ roll. E, em
epílogo, do DJ que”como ninguém, quer matar a cantiga”.
um
género que fez história. Foi nos anos 70 que o género “ópera rock”
levou ao absurdo a fórmula do “álbum conceptual” que animou uma fatia razoável
do rock progressivo. Se o rock progressivo era sonho, ambição e literatura, a
“ópera rock” foi teatro e exagero. “Tommy” e “Quadrophenia”, dos The Who,
permanecem como paradigmas de um género que, já no ocaso da década, originou
“The Wall”, dos Pink Floyd e que antes passara, mais ou menos camuflado, por
“The Lamb Lies Down on Broadway”, dos Genesis. Já “Hair”, “Oh, Calcutá” ou
“Jesus Christ Superstar” inserem-se sobretudo na tradição do teatro musicado,
no “music hall”, imbuído do espírito “hippie”, mais do que no teatro popular,
de cabaré e cariz ideológico marcadamente de esquerda, desenvolvidas por
Brecht, Kurt Weill e Hans Eisler. Antepassados da ópera rock, encontramo-los
recuando aos anos 60, em obras como “S. F. Sorrow”, dos Pretty Things (da qual
se diz ter influenciado Peter Townshend na idealização dos seus projetos
megalómanos com os the Who) ou “The Story of Simon Simopath”, da banda inglesa
de pop psicadélica Nirvana.
Na
atualidade, músicos/escritores como Philip Glass, Laurie Anderson, Robert
Ashley, Meredith Monk, Heiner Müller ou Tod Machover subtraíram ao género o
“rock”, substituindo-o por “vídeo”, “multimédia”, “performative art”,
“programático”, etc, de acordo com conceções que revertem as formas
tradicionais do teatro para os novos moldes permitidos pela introdução das
novas tecnologias eletrónicas, tanto ao nível gráfico e cenográfico como
musical. Os UHF apenas pretenderam contar uma história. A sua história. Com
circunstância e alguma pompa. “Ópera rock” oblige...
pela
estrada certa. As pretensões dos UHF são mais modestas. Embora AMR,
referindo-se à efeméride do 25º aniversário do grupo, afirme, sem falsas
modéstias: “Se fôssemos americanos estávamos a caminho de sermos carimbados no
rock ‘n’ roll hall of fame!”. Em vez de um álbum de tributo (“significa em
geral que já se está com os pés para certo sítio!...”) preferiu a “provocação”
do formato “ópera rock”. “Resolvemos ser nós a fazer a nossa história antes que
aparecesse alguém a fazer alguma parvoada”.
Fazer
este duplo álbum exigiu dedicação a tempo inteiro. Só “La pop end rock”, chave
do álbum, garante o veterano rocker nacional, “passou por três arranjos
diferentes”. “La Pop End Rock” é álbum que permitirá aos admiradores do grupo,
além da música, deliciar-se com a decifração das charadas que se encontram
disseminadas pelas letras (quem é “Aime eme ra”?). “La Pop End Rock” tem orquestra,
tem canções com a força de “Cavalos de corrida”, tem uma mística que o grupo, a
mal ou a bem, tem conseguido manter intacta e bem colada ao corpo.
Há
quem odeie, quem encolha os ombros com desdém, mas também quem sinta uma
curiosidade irresistível de espreitar para dentro de “La Pop End Rock”, nem que
seja para avaliar o estado do rock em Portugal. Históricos ou dinossáurios, não
desistem de dar o salto em frente e de não estancarem o fluxo de adrenalina que
continua a escorrer sempre que se liga uma guitarra elétrica à corrente. AMR,
Joad, é o herói com uma causa, o sobrevivente, o noctívago-agora-menos que fala
dos Velvet, dos Doors, de Neil Young, de Keith Richards e de Peter Hammill, que
afirma que “o rock português é do mais bem escrito do mundo” e que permanece à
boca de cena a cantar “Do céu ao inferno, pode ser assim, do céu ao inferno,
sem sair daqui!”. Provocatório, “La Pop End Rock” é um álbum sem papas na
língua que obrigou mesmo a que se lhe colasse na capa o rótulo “linguagem
explícita”. AMR é um pedaço vivo da tradição do rock ‘n’roll em busca, ainda e
sempre, da redenção. “Por três minutos na vida/Acharei a felicidade/Na canção
prometida/A minha felicidade”.
Entre
os naipes de violinos, o piano introspetivo, as guitarras galopantes e melodias
que não cessam de dar a volta ao que sempre se trauteou dos UHF, descobrem-se
boas canções: “Um anjo no meu quarto”, “Fora da garagem, já!”, o sarcástico
“Quero um lugar no top inglês”, “Uma história com (a)gente”, “Joey Ramone”, “A
noite inteira”, “A lágrima caiu”, “Por uma guitarra elétrica”, “Aqui vamos
nós/sem disfarce”, a velvetiana “Memórias de hotel”, “Por três minutos de
vida”, “Ai eme ra”... Joad há-de continuar a procurar, pela estrada, a que seja
perfeita. A cantar “Eu escolhi a estrada certa”. A máscara de AMR é
transparente.
UHF
La
Pop End Rock
2xCD Capitol, distri. EMI – VC
7|10
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