PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 12 JUNHO 1991 >> Pop Rock >> LP’s
O HOMEM E O MITO
DAVID BYRNE
The Forest
LP, MC e CD,
Luaka Pop/Sire, distri. Warner

David Byrne passou definitivamente
para o “outro lado”. “The Forest”, o seu mais recente projeto, não tem
rigorosamente nada que ver com toda a sua discografia anterior, a solo ou nos
Talking Heads. Em termos formais, trata-se de uma obra conceptual, inteiramente
orquestral e destituída de quaisquer conotações com o rock ou a pop. O título
pode induzir em erro, sugerindo um manifesto ecológico pró-Amazónia, que, no
caso de Byrne, nem sequer seria despropositado, tendo em conta anteriores
ligações ao Brasil, à sua música e aos seus rituais. “The Forest” avança
exatamente na direção oposta à “féerie” carnavalesca de Rei Momo ou das
recentes coletâneas brasileiras. “Floresta” que aqui funciona antes de mais
como uma metáfora do inconsciente coletivo. “Menos uma peça e mais um processo
de descoberta do nosso lugar no mundo”, para utilizar as palavras do
compositor. Chegados a este ponto o melhor é sentarmo-nos todos, relaxar,
cruzar as pernas, acender o cachimbo e baixar as persianas e a voz. O assunto é
sério e merece discussão. Vamos por partes.
Comecemos pelo som, que é o que chega
aos ouvidos em primeiro lugar. Peça única, dividida em dez partes, em que a
orquestra é o principal “instrumento” solista. Há coros grandiosos, percussões
tonitruantes e, ocasionalmente, a voz de Byrne, quase irreconhecível. A
explicação encontra-se em parte no crescente interesse que o músico tem vindo a
devotar aos compositores românticos do século passado, saltando por cima da
aventura serialista, para recuperar o maior mediatismo da “música de filmes”,
aquela que as pessoas associam a sentimentos de “respeito”, “mistério”,
“aventura”, “terror”, “angústia” e “alegria”.
Os saltos seguintes são menos
evidentes. A ideia de Byrne é a seguinte (baixemos ainda mais o tom de voz e,
já agora, o de lá do fundo que apague a luz e feche a porta): juntar a
mitologia suméria às novas conceções do mundo nascidas da Revolução Industrial.
“Não é possível!”, exclamam todos em coro. “Com David Byrne, tudo é possível!”,
riposta, imperturbável, o crítico, voltando a acender o cachimbo e descruzando
as pernas, enquanto se delicia com a reação da plateia.
Na altura, David Byrne andava a ler
muito provavelmente o clássico de Mircea Eliade. De repente, descobriu que “as
lendas e mitos podiam funcionar como uma espécie de histórias primordiais, a
partir das quais emergiriam todos os filmes contemporâneos, programas de TV e
novelas”. Como o mito mais antigo que conhecia era o poema sumério da saga de
Gilgamesh, foi por aí que começou. Já agora, para aliviar um bocado a tensão
(está um ambiente de cortar á faca), eis alguns dos subtítulos de “The Forest”:
“Ur”, “Dura Europus”, “Samara”, “Nineveh”, “Teotihuacan”, “Asuka”...
Onde é que íamos? Ah, sim, os mitos...
Pois, acontece que esse, como outros mitos, descreve (de forma mais ou menos
obscura), “voilá”, “as relações entre a natureza e a cultura, a luta do homem e
da civilização contra a natureza, a imortalidade e a morte”. Ora, precisamente,
toda esta problemática foi discutida e reformulada durante a Revolução
Industrial, na Europa e nos Estados Unidos, dando origem a novos conceitos
como: “a natureza é maravilhosa e as cidades são feias” ou “Deus faz parte da
natureza, o homem não”, bem assim como a noções revolucionárias sobre o que
eram, ou deveriam doravante passar a ser, coisas tão importantes como
“progresso”, “sexo”, “trabalho”, “sexo”, “máquinas”, “sexo”, “amor” e,
sobretudo, “sexo”. O problema (e eis-nos chegados ao cerne da questão), está em
que a dita revolução passou para a vitrina dos museus, mas as ideias e
preconceitos entretanto formados, não. Citando Byrne: “Vivemos já num novo
mundo, com uma cultura assente no primado da informação e da computorização,
mas os hábitos mentais e as crenças das pessoas permanecem obsoletos.” Para
abreviar a coisa (já se notam ao fundo da sala alguns bocejos): Somos
“modernos” da treta, que só querem sopas e descanso.
É aí que aparece “The Forest”,
decidido a alterar o estado calamitoso a que chegámos e a acabar de vez com
tamanha vergonha e iniquidade. Mas, para tal, tornava-se necessário penetrar
nos meandros da “floresta” metafórica do inconsciente, “sentir o romance das
fábricas, a beleza, o poder e as possibilidades das máquinas que iriam
transformar o mundo” e depois “tentar usar esta música para entrar nas mentes
dos nossos antepassados, tanto os europeus como os sumérios”. Só assim se
tornará então possível dar um passo em frente, em direção ao futuro, que
provavelmente coincidirá com o próximo álbum dos Talking Heads.
Malta, vamos a acordar. A coisa não é
assim tão grave. Afinal trata-se apenas do novo disco de David Byrne. O homem
até acredita no que diz e, o que é mais importante, de cada uma das suas
loucuras resulta sempre música interessante. Como é o caso. Passadas a
estranheza e resistência inicial ao radicalismo formal e à recusa sistemática
em conceder o mínimo espaço à dança. Substituído pelo rigor orquestral e pelas
estruturas “clássicas”, de que “The Forest” (parte da qual foi utilizada na
peça teatral do mesmo nome, dirigida por Robert Wilson) faz gala em ostentar,
resta apenas cortar as amarras, partir à aventura e seja o que Deus quiser.
Depois da audição haverá talvez quem desate a correr desaustinado à procura de
segurança nos discos dos Talking Heads. Outros pensarão que, afinal de contas,
talvez Beethoven, Wagner ou Mahler não sejam assim tão maus. Outros,
finalmente, ficarão mergulhados no mais profundo estupor. A maioria ficará
confusa, sem saber o que fazer deste objeto “diferente” e impenetrável a emoções
primárias.
Independentemente de tudo, porém, fica
uma certeza: David Byrne (re)tomou a dianteira e o comando das operações, na
frente mais avançada das manobras musicais do nosso século. “The Forest” ficará
na história como um dos manifestos mais belos alguma vez escritos sobre a
inquietação do homem perante o absoluto. Podem sair. *****