25/11/2025

Robert Fripp atua em Lisboa

 PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 1 MARÇO 1991 >> Cultura

 

Concerto da “Liga dos guitarristas habilidosos”

 

Robert Fripp atua em Lisboa

 

ROBERT FRIPP atua em Lisboa no próximo dia 15 de abril, em local ainda por confirmar, num espetáculo único organizado por Hernâni Miguel/Contraverso. Acompanham o antigo guitarrista dos King Crimson, a League of Crafty Guitarists, constituída por onze executantes do instrumento, seus discípulos e antigos alunos de seminário.

Fripp é unanimemente considerado, depois de Hendrix, um dos grandes inovadores da guitarra elétrica e nomeadamente da técnica por si inventada a que chamou “Frippertronics” – um sistema de interface entre a guitarra e uma série de gravadores e controladores de som que permite a criação de ciclos repetitivos e estruturas tonais suscetíveis de múltiplas manipulações.

Fundador de uma das bandas mais importantes do denominado “rock progressivo” dos anos Setenta, os King Crimson (atuação memorável, em agosto de 1982, no estádio do Restelo, antes dos Roxy Music), com os quais assina obras capitais como “In the Wake of Poseidon”, “Lizard” ou, em fases posteriores, “Larks’ Tongues in Aspic”, “Red” e “Discipline”, Robert Fripp gravaria posteriormente a solo uma trilogia em que profetizava mudanças radicais para a sociedade ocidental na década de Oitenta (“Exposure”, “God Save the Queen/Under Heavy Manners” e “Let the Power Fall”).

Associa-se a Brian Eno na feitura de dois discos experimentais e obscuros: “No Pussyfootin’” – primeiro em que utiliza as frippertronics – e “Evening Star”. Com Andy Summers, dos Police, grava “I Advance Masked” e “Bewitched”. Participa como músico convidado em discos de Peter Hammill, Peter Gabriel, David Bowie, Talking Heads, Blondie e Toyah Willcox (com quem viria a casar).

 

Práticas tântricas

 

A meio da década de 80 retira-se para um mosteiro em Inglaterra, dedicando-se a meditação e a práticas tântricas de autodisciplina inspiradas nas doutrinas de J. G. Bennett, discípulo de Gurdjieff. A partir de 1985 dá aulas de guitarra e realiza seminários sobre novas técnicas para o instrumento. Escolhe alguns dos seus melhores alunos e forma a League of Crafty Guitarists, grupo que a partir de então o tem regularmente acompanhado em atuações ao vivo. “Robert Fripp and the League of Crafty Guitarists”, de 1986, é até agora o único registo discográfico desta formação.

Desenvolvendo-se segundo combinações instrumentais que vão desde o simples dueto até complexas polirritmias e explorações tímbricas praticadas pela totalidade dos doze intérpretes, a música da “Liga dos guitarristas habilidosos” é o contraponto estético e estilístico da visão “brutista” e totalitária das orquestrações para guitarra elctrica, de Glenn Branca. Abril, em Lisboa, as guitarras vão cantar.

 

James Brown - & Friends

 PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 27 FEVEREIRO 1991 >> Pop Rock >> Vídeos

 

JAMES BROWN & FRIENDS
James Brown & Friends
Music Club, distri. Anónima, 57 min.

Uma imagem com texto

Descrição gerada automaticamente

Para os amantes da música “soul” este registo ao vivo das atuações de James Brown e alguns convidados muito especiais, no “Taboo Club” de Detroit, Michigan, em 1987, é uma peça de arquivo fundamental. Para todos os que não se incluem na categoria restrita atrás enunciada, funciona como um entretenimento agradável e apenas isso. Não há quaisquer efeitos especiais, para além daqueles eventualmente provocados pela audição da música. Um apresentador apresenta, como lhe compete. Os instrumentistas tocam, como se lhes pede. Os cantores cantam, como seria de esperar. Boa oportunidade para se recordar clássicos da “soul music” na voz de um dos seus expoentes – “Papa’s Got a Brand New Bag”, “In the Midnight Hour”, “When a Man Loves a Woman”, entre outros.

James Brown apresenta-se com o bom-gosto habitual: “smoking” prateado e reluzente, decotado até ao umbigo, cabelos cimentados de laca, penteados ao estilo Freddy-Mercury-de-peruca. À medida que os convidados vão chegando, a coisa aquece: primeiro Wilson Pickett, outro senhor da “soul”, seguido de Billy Vera e Joe Cocker, este para interpretar “When a Man Loves a Woman”. Robert Palmer (impecável, de barba bem aparada, gravata e fato completo, de corte irrepreensível) interpreta “Sugar & Spice” em dueto com Brown e, a solo, um dos temas que lhe deu fama e proveito, “Addicted to Love”.

Aretha Franklin, decotada e dificilmente contendo dentro do vestido os excessos de adiposidade, dança um “slow”, agarradinha ao chefe Brown, e canta como só ela sabe. Por fim, juntam-se todos no palco para, felizes, cantarem em coro “Living in America”. E acabou. Muito para uns, pouco para outros. É como tudo na vida. **

 

Ambitious Lovers - Lust

 PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 27 FEVEREIRO 1991 >> Pop Rock >> LP’s

 

O PECADO GENIAL

 
AMBITIOUS LOVERS
Lust
LP, MC e CD, Elektra, distri. Warner port.

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             Depois da avareza (“greed”) e da inveja (“envy”), os Ambitious Lovers voltam a pecar, desta feita incorrendo na falta da luxúria (“lust”). Por esta nova amostra, apetece dizer: pequem muito, pequem sempre. Os pecadores são Arto Lindsay e Peter Scherer.

Há pouco gravaram um disco repleto de ambientalismos experimentais para a série de luxo belga Made to Measure. O disco chama-se “Pretty Ugly” e é excelente. Agora regressaram aos prazeres mais imediatos da canção e da dança. E de que maneira! “Lust” é fabuloso da primeira à última espira. Provoca emoções e empurra o pé para a dança. Excita o corpo e seduz a inteligência. Junta com todo o à-vontade os tropicalismos brasileiros, caros a Lindsay, à imaginação tecnodelirante de Scherer. Arto (guitarrista dos originais Lounge Lizards) é a palavra, inglesa e portuguesa, a alma calorosa aprendida no sertão. Peter compõe a música, arranja-a e mostra como o “sampler” e a eletrónica, quando manejados, como é o seu caso, por mãos e cabeça que sabem, não têm realmente limites. Desde a bossa nova melancólica, que dá título e início ao disco, até à belíssima balada final para voz e piano, que o encerra (“É preciso perdoar”), o álbum faz desfilar uma sucessão de maravilhas diante do ouvinte extasiado.

Há pormenores engraçados: em “It’s Gonna Rain” e “Monster”, as entoações vocais de Lindsay lembram Annette Peacock (repare-se, por exemplo, na maneira como, em “Monster”, Arto canta os versos “Have you got the stamna/This is worse than non-fiction…”); os arranjos e produção de “Ponta de Lança Africano – umbabarauma” e o mesmo “Monster” recordam idênticas e luxuriantes operações levadas a cabo por Brian Eno em “Remain In Light” dos Talking Heads. Depois, não vale a pena fazer mais comparações nem buscar outras referências – o disco “agarra-nos” e submete-nos à ditadura do desejo e do prazer, fazendo jus ao título e às capacidades dos músicos. “Tuck it in” e, de novo “Monster”, já para não falar dos dois temas que contam com a participação de Nile Rodgers, são brilhantes exercícios de música de dança, excitante e inteligente. “Half out of it” é “technohousefunkyacidbody” experimental – Peter Scherer desmonta e volta a montar os esquemas rítmicos, fornece pistas, cada uma suficiente para compor nova canção, avança e recua ou as duas coisas ao mesmo tempo, enfim, o único adjetivo que se lhe pode e deve aplicar é, sem sombra de dúvida (ou de pecado), “genial”. Escute-se o “scratch” simulado em “Ponta de Lança” (composto por Jorge Ben), o “delay” cintilante do piano eléctrico em “More Light”, a maneira como enriquece cada tema com pormenores brilhantes de concisão e imaginação. Escute-se e pasme-se. Arto Lindsay escreve os textos e canta-os cada vez mais como se tivesse nascido brasileiro. Selva de estrelas. Selva de desejos. “Lust” exibe profusamente as marcas inconfundíveis que definem as obras ditas “primas”. *****

 

A fera amansada [Iggy Pop]

 PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 27 FEVEREIRO 1991 >> Pop Rock

 

A FERA AMANSADA

 

“Sou o rapaz ignorado pelo mundo, aquele que só tenta destruir” – palavras de Iggy Pop, de seu verdadeiro nome James Newell Osterberg. Hoje já não será tanto assim, alargada a distância entre o homem e o mito. Sexta-feira, em Lisboa, sábado no Porto, o fundador dos Stooges regressa, passados dez anos, a Portugal, para duas atuações nos Coliseus (ditos de recreio), onde normalmente se exibem as feras.

 


Iggy Pop representa (ou representou) o lado mais niilista da música rock. Recusou sempre o supérfluo, as modas, a facilidade. A sua vida (que em parte se confunde com a obra) tem sido uma montanha-russa em que normalmente o carro se solta dos carris. Sobreviveu às sucessivas quedas. Eleito padrinho pelos punks, gostava de se autoflagelar e cortar com lâminas ou cacos de garrafa. Não seria da nossa conta se não o tivesse feito sobre o palco. Orgulha-se do corpo que tem e exibe-o sem vergonha, também sobre o palco. Mesmo sem querer, acaba sempre por dar espetáculo.

 

 

O retorno a Si

 

Recentemente atuou em Inglaterra, na Brixton Academy em Londres e na Escócia, na Glasgow Barrowlands, ao lado dos That Petrol Emotion, em concertos que a crítica louvou e onde o público delirou. Aparentemente a pose mantém-se inalterável: o corte de cabelo de sempre, olhos desmesurados, o tronco nu e cicatrizado enfiado numas “jeans” rotas e desbotadas que teimam em querer escorregar pelas pernas abaixo. E as canções, claro, as antigas e as novas, do recente “Brick by Brick”. Canções ternas e duras: “Raw Power”, “Loose”, “Dirt”, “No Fun”, “I Wanna Be Your Dog”, “Lust for Life”, “China Girl”.

“Brick By Brick”, gravado para a multinacional Virgin, quebra a tendência “clean” de “Blah Blah Blah”, funcionando como catarse autobiográfica do “anarquista rock” por excelência, como lhe chamou há anos Lester Bangs em artigo publicado na “Village Voice”. Apoiaram-no no empreendimento, entre outros, Slash e Duff McKagan, dos Guns ‘n’ Roses, Kenny Aronoff, da banda de John Cougar Mellencamp, John Hiatt e a vocalista dos B-52’s, Kate Piersen. Sobre a sua nova atitude perante a vida são esclarecedoras as declarações que então proferiu, relativas a “Something Wild”, uma das canções do disco: trata-se da “história de um tipo que se sente tudo menos confortável sobre as suas responsabilidades como adulto. É o equivalente humano a um animal selvagem recém-domesticado que não quer ficar no quintal. Às vezes quer, outras não. Isto exprime bem como me sinto atualmente. Estou no quintal, mas não tenho a certeza de quanto tempo vou ficar. Provavelmente até fico, mas a luta é enorme”. Significativo.

 

Anjo maldito

 

Iggy Pop nasceu em Detroit, filho de uma família típica da classe média americana. Fez parte de um grupo de escuteiros. Depois descarrilou. Com os Iguanas ganhou o epíteto que nunca mais o abandonaria. Quando “Fun House” e “Raw Power” rebentaram como bombas na cena pop anglo-americana (respetivamente em 1970 e 1973, em pleno período áureo dos “sinfonismos” progressivos), o rock ‘n’ roll nunca mais voltou a ser o mesmo. Seis anos antes de os punks ensaiarem os primeiros passos, já Iggy dominava o ruído, a velocidade e a distorção, aplicando-os à música e ao corpo por igual.

Era a época dos excessos, a todos os níveis – entre a dor e o prazer máximos –, do consumo desenfreado de ácool e heroína. Os Stooges não aguentaram o andamento e abandonaram. O que tinham a dizer, disseram-no em pouco tempo. Iggy Pop perdeu todos os contactos que o ligavam aos antigos companheiros, com os quais, afirma, nada tem hoje em comum, apelidando-os de “gordos, bêbedos incontinentes e dependentes da metadona”, o que aconteceu, de resto, a quase toda a gente com quem trabalhou. “Os velhos tempos morreram” – como gosta de dizer.

Talvez não o pudesse ter dito se não lhe tivesse aparecido um anjo da guarda na altura certa. Esse anjo apareceu e chamava-se David Bowie. Anjo, também ele com problemas de droga – no caso a cocaína. Só que Bowie tinha a capacidade de se inventar e libertar da própria pele, como se fosse ele afinal o verdadeiro iguana. Libertou-se e libertou o amigo, anjo como ele mas da casta dos malditos. Foi buscar Iggy ao hospital psiquiátrico onde apodrecia e, se calhar, tirando-o do inferno. Partiram juntos para Berlim e daí para França, onde, em 76, gravaram “The Idiot”, primeiro trabalho de Iggy Pop sem os Stooges. Depois seriam obras fundamentais como “Lust for Life” (77), “New Values” (78) e, dez anos mais tarde, “Instinct”, de 88. Pelo meio ficavam “Soldier” (80), “Party” (81), “Zombie Birdhouse” (82), “Blah Blah Blah” (86) e o “pirata” “Metallic K.O.” (74, registo ao vivo do derradeiro concerto dos Stooges, no Michigan Theatre de Detroit).

Muitas histórias haveria ainda para contar, das mais sórdidas às sublimes. Enfrentando a década de 90 com o entusiasmo e a energia que sempre o caracterizaram, Iggy Pop parece finalmente ter aprendido a crescer, assumindo a paternidade de um filho nascido de uma relação antiga com uma “groupie” e recusando de vez os consumos ilegais. Refere-se à presente fase da sua carreira como “acessível”, “compreensiva” e “adaptável” e a si próprio como “homem casado que paga os seus impostos e faz o seu trabalho cuidadosamente”. Em todo o caso, talvez seja melhor desconfiar.

Rockócó [Pop Dell'Arte]

 PÚBLICO SEGUNDA-FEIRA, 25 FEVEREIRO 1991 >> Cultura

 

João Peste dá show no cinema Alvalade

 

Rockócó

 

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O CONCERTO que os Pop Dell’Arte e os More República Masónica deram anteontem à noite no cinema Alvalade, em Lisboa, serviu essencialmente para mostrar três coisas: a) que as bandas portuguesas aprenderam a fazer barulho; b) que isso não chega; c) que o público de rock se está nas tintas para isso e do que gosta mesmo é de barulho.

Em termos decibélicos a prestação de ambas as bandas pode pois considerar-se excelente. Em termos musicais, não. Os More República Masónica têm entusiasmo, garra e já alguma escola. Estudaram bem a lição de duros e pesados como os Stooges, Led Zeppelin ou os mais modernos Sonic Youth. O vocalista sabe despir bem a camisa e apresenta já um certo estilo de queda no palco, contorcendo-se no solo com desenvoltura e alguma elegância. Os outros três souberam manter-se de pé, como lhes competia, sem oscilar demasiadamente e agredindo com convicção os instrumentos. Tocaram (sempre a cem à hora) temas como “89/90”, “Azul Dietrich” (uma espécie de hit), “Sin City”, “Wild America”, “Piloto Automático”, “Train Surfin’” e “Hold My Gun”. Teriam tudo a ganhar se acalmassem um pouco e rodassem o botão do volume um bocadinho para o lado esquerdo.

João Peste surgiu no palco do Alvalade debaixo de uma trovoada de aplausos, como uma diva que regressa do exílio – manto vermelho sobre os ombros, ceptro na mão, poses fatais para a fotografia. Teatro, em suma. Peste sabe ser, como ninguém, ator e “entertainer”, acentuando o lado perverso do espetáculo. Anteontem fez de tudo um pouco: dialogou com a sua própria voz “samplada”, tranquilizando a rapaziada com um “don’t worry kids, I am your friend”. Se os “kids” acreditaram, tanto pior para eles. “I love rock ‘n’ roll” – murmurou num espasmo cínico, no meio da orgia sónica. Ciciou deliciado “Love to love you baby”, fingindo-se Donna Summer. Voltou o traseiro para a audiência, em desafio. Ninguém, aparentemente, se sentiu desafiado.

Sei Miguel apareceu como convidado, tocando trompete numa nota só (aparentemente um ‘sol’), solto no ar de 30 em 30 segundos, revelando assim ter aprendido bem os rudimentos da conceituada estética minimalista dita “da buzina”. Contrastando com a contenção do famoso rival de Miles Davis, os outros músicos optaram pela estética oposta do “ó marreco aumenta o som”, para tapar os buracos, em temas como “Illogik Plastic”, “Avanti Marinaio”, “Polygrama”, “Loane & Lyane Noah”, “Esborre”, “Querelle” e “Mai 86”.

Escusado será dizer que o público adorou e pediu mais, obrigando os Pop Dell’Arte a regressar ao palco para quatro “encores”. Uma noite artística.

12/11/2025

Não existe, a solidão? [Leo Ferré]

 PÚBLICO SÁBADO, 23 FEVEREIRO 1991 >> Local >> Televisão

 

Não existe, a solidão?

 

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AMOR, anarquia. Ou “Amour anarchie”, dito com aquela musicalidade picante e melancólica de que só o francês é capaz. Amor e liberdade absolutos como os cantava Léo Ferré, no início da década de 70, num duplo álbum de histórias escritas a fogo que fez história. Hoje, volvidos vinte anos, as palavras regressam na voz e no corpo do mesmo homem, em “Ferré 90”, realizado nos estúdios da Societé Française de Productions, por Jean-Christophe Averty, pretexto para de novo se evocar as palavras-chaves da vida e obra do poeta-cantor.

Obra ímpar, da qual ficaram canções que parte de uma geração não esqueceu: “Le Mal”, “La Memoire et la Mer”, “La Folie”, “L’Amour Fou”, “La Solitude” (“dizer que a solidão não existe, como na canção, é uma idiotice” – afirmava em entrevista publicada há anos, aquando da sua última visita a Portugal). O mal, a memória, a loucura, o amor louco, a solidão – outras tantas maneiras de dizer a arte quando assumida até às últimas consequências. E Paris, sempre (“Paris, je ne t’aime plus”, “Paris, c’est une idée”), cidade-mulher que dizem ser de luz e berço dos poetas que o demónio cativou: Valery, Éluard, Aragon, Prévert, Breton, outros tantos surrealistas que Ferré cantou com a raiva, a ternura e a lucidez dos sonhadores. Breton não lhe perdoou o ter querido publicar “Poètes, vos papiers”, como se de lixo se tratasse. Yves Montand telefonou uma vez ao autor de “Chanson Metaphisique” para lhe chamar “fascista vermelho”. Ferré, felizmente, não podia ser expulso de qualquer grupo pela simples razão de não fazer parte de nenhum – “estou sozinho na vida, sozinho na minha cabeça” – costumava dizer. Continuou a amar e a gritar, recusando a passagem monótona dos dias e a prisão das teorias, apaixonado pelo impossível até à loucura e exaustão.

Loucura apaixonada, embriagada de palavras e visões. Nos versos, mas também na música – Léo Ferré apreciava o romantismo de Ravel e Debussy (“um ‘poeta’ extraordinário”). Detestava o logicismo implacável dos dodecafónicos como Webern e Schoenberg. De Jacques Brel dizia não compreender por que razão as pessoas sempre associavam os seus nomes. Avesso à “modernidade” do efémero, fez todavia parte do agrupamento pop “Zoo”. Não se importa de reconhecer qualidade a um “videoclip” de Mick Jagger.

E depois, sempre, a paixão pelas mulheres, a paixão pelo amor (chamou-lhe “a eternidade do instante”), o gesto largo e definitivo de quem não tem nada a perder. Léo Ferré representa a vertente libertária da música popular francesa. Hoje à noite vamos vê-lo e ouvi-lo cantar que é possível negar “toda e qualquer autoridade, venha ela de onde vier”.

Arte Pop e Maçonaria [Pop Dell'Arte]

 PÚBLICO SÁBADO, 23 FEVEREIRO 1991 >> Cultura

 

Pop Dell’Arte hoje em Alvalade

 

Arte Pop e Maçonaria

 

RESSUSCITADOS dos mortos, os Pop Dell’Arte, banda liderada por João Peste, tocam hoje à noite, pelas 22h, no cinema Alvalade, em Lisboa, juntamente com os More República Masónica, provando que continua a haver lugar (por enquanto) para os sons alternativos, na cena musical lusitana.

Formada em 85, a banda de Peste fez sempre questão de se mostrar diferente, na música e na atitude dos seus membros. Onde para muitos a Pop se resolve na linearidade das canções e na repetição de tiques repescados da “estranja”, para o vocalista dos PDA o risco é assumido enquanto condição necessária para a própria sobrevivência da banda. Por isso pararam, em 1989, dando João Peste início a uma série de atividades paralelas: subversões várias e disco com os “Acidoxibordel” ou a apresentação, com Nuno Rebelo, o ano passado na Feira do Livro, do espetáculo “Alix na Ilha dos Sonhos”. Para trás ficavam os maxis “Querelle”, “Sonhos Pop” e “Illogik Plastic” e o álbum “Free Pop” (este mês reeditado em CD), por alguns considerado como dos melhores de sempre da música portuguesa, e espetáculos ao vivo como aquele ao lado dos niilistas alemães Sprung Aus Den Wolken, no extinto Rock Rendez-Vous.

Razão principal para a dissolução (consensual) do grupo foi, segundo João Peste, a saturação musical provocada pela ausência de perspetivas e motivações dentro de um meio nacional demasiado “pequeno” e fechado. Agora a situação alterou-se, havendo, parece, fortes possibilidades de os Pop Dell’Arte arrancarem para uma carreira no estrangeiro. Daí o regresso, com uma formação constituída por João Peste (voz), José Pedro Moura (baixo), Luís San Payo (bateria), Rafael Toral (discos, fitas magnéticas, guitarra) e João Paulo Feliciano (guitarra), estes dois últimos juntos no novel projeto “No Noise Reduction”.

Na primeira parte atuam os More República Masónica, banda relativamente recente formada por Paulo Coelho (voz, percussão), Mário Gil (guitarra, voz), Jorge Dias (baixo, voz) e Jaime Pimentel (bateria). Apostados, segundo dizem, em “rapinar” onde for mais interessante” para dar “corpo a uma sonoridade forte e ritmada, derivada diretamente do rock ‘n’ roll, os MRM contam no ativo atuações “à margem” no Sexto Concurso de Música Moderna do RRV e no concurso televisivo “Aqui D’el Rock”, e a gravação de uma “demo tape” reunindo cinco temas dos quais “Azul Dietrich” foi incluído na coletânea “Insurrectos” da editora da Guarda, Área Total.