PÚBLICO QUARTA-FEIRA, 3 JULHO 1991 >> Pop Rock >> Reedições
O ÍNDICE DA DOR
NICO
The Marble Index
CD, Elektra,
import. Contraverso
Deusa
da lua, heroinómana, valquíria, mulher de má vida, anjo exterminador,
romântica, gélida, misteriosa, de tudo chamaram a Nico, Christa Paffgen de seu
verdadeiro nome. Começou como modelo. Federico Fellini descobriu-a atriz e
loura e apresentou-a em “La Dolce Vita”, na pele e na pose de “star” entediada.
Andy Warhol, o tédio personificado, descobriu-a cantora e lançou-a às feras,
que é como quem diz, aos jovens leões Lou Reed e John Cale – então alucinados
em ondas sucessivas de provocação e “feedback”, num projeto a que chamaram
Velvet Underground – e à vertigem multimédia da “Exploding Plastic Inevitable”,
entre as contorções de Edie Sedgwick, as projeções e luzes psicadélicas de
Danny Williams e Paul Morrissey e o chicote de Gerard Malanga.
Ela distinguia-se no meio da confusão,
com o seu porte altivo de deusa lívida e lunar e o ar distante de quem se
passara para o outro lado. Esfinge marmórea, a cantar, com voz grave e cortante
de “Femme fatale”, “All tomorrow’s parties” e “I’ll be your mirror”, no álbum
da banana, contra os estertores anfetamínicos dos companheiros. A ela, à deusa,
até as anfetaminas provocavam depressão e a faziam descer sem remédio, degrau a
degrau, a escada que conduz ao inferno. O inferno eram os outros. Todos. Brian
Jones, Bob Dylan, Tim Buckley, Tim Hardin e Jackson Browne foram dos poucos que
lhe compreenderam o destino e aceitaram a loucura. E John Cale, até ao fim.
Conversas intermináveis e sem sentido,
nos desencontros do hotel Chelsea. Uma tentativa fracassada para a
plastificarem ao lado de barbies como Sandie Shaw, Cilla Black ou Dusty
Springfield. A compra do pequeno órgão de foles, que viria a constituir peça
fundamental na sua iconografia de negritude e solidão. Fragmentos de uma lenda
que a morte prematura tornou ainda mais difusa e impenetrável a interpretações.
Durante um concerto a solo na nave de uma igreja, houve quem garantisse ter visto
o seu rosto transformar-se em caveira. Nico simbolizava a máscara humana e
feminina da morte.
“The Marble Index” personifica de
forma exemplar esse fascínio por Tanathos, pela sombra, pintada com os tons
violetas e dourados da decadência romântica. “Lawns of dawns”, “Facing the
wind” ou “Frozen warnings” arrasam as estruturas narrativas da canção pop
convencional, ao mesmo tempo que invertem o sentido do discurso amoroso,
tornado sinónimo de dor e abandono, em entoações de gelar a alma, envolvendo-a
num manto de eterna escuridão. “The Marble Index” assinala a fronteira entre
dois mundos – o dos deuses (e demónios) e o humano –, na qual, diz a mitologia,
vagueiam os heróis. Num filme crepuscular sobre a morte, “Le Berceau de
cristal”, Philippe Garrel (que filmava para evitar suicidar-se, como amiúde
afirmava) mostra a Nico a declamar um poema de flores mortas e gritos
silenciosos, na única concessão à voz humana.
Em Nico viu Garrel a imagem sem luz
que personificava a sua tragédia pessoal. Voltaria a filmá-la em “La Cicatrice
intérieure”, título emblemático para o filme de terror metafísico eternamente
projetado no ecrã interior da diva espectral. “Desertshore”, “The End”, “Drama
of Exile” e “Camera Obscura”, algumas das obras ímpares da cantora a quem Bob
Dylan ofertou certa vez uma canção, são outras tantas maneiras de dizer a
solidão. “The Marble Index” anunciava já a catástrofe: sobre o acompanhamento
minimal de John Cale, instala-se, canção a canção, o sofrimento, como espadas
cravadas na espinha. Ou a vida que lentamente se cristaliza nas lágrimas
petrificadas de uma caverna imensa onde o fogo há muito se extinguiu. ****
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