PÚBLICO SEXTA-FEIRA, 28 JUNHO 1991 >> Fim de Semana >> Concertos
OS ARTISTAS VÃO ONDE O POVO ESTÁ
Domingo, 30 de junho, 22h. Campo Pequeno. A Pat Metheny, já
lhe chamaram “futurista moderado”. O guitarrista, um dos maiores de jazz dos
anos 80, volta a tocar, desta vez em Lisboa, com Milton Nascimento, o cantor
que levou o Brasil à terra de Metheny e que dá, agora, voz aos índios da
Amazónia. Mais uma coincidência: ambos vão tocar a solo no Porto: primeiro, o
brasileiro, depois será a vez do americano.
Artigo e introdução em conjunto com António
Curvelo, em que FM escreve sobre Milton Nascimento e AC sobre Pat Metheny
MILTON NASCIMENTO
“Todo o artista tem de ir aonde o povo
está” – a afirmação pertence a Milton Nascimento e serve para definir uma
atitude perante a arte e a vida que, no seu caso, significam uma e a mesma
coisa. Milton Nascimento (voz militante das minorias, negra, índia, ou dessa
raça em vias de extinção que é a humanidade), nasceu no Rio de Janeiro, há 49
anos, onde foi adoptado por uma família que o ensinou a partilhar “os campos e
os rios, um céu belo não poluído e os jogos que as crianças de hoje não
conhecem mais”. Percebe-se que nunca perdeu essa inocência, quando se ouve a
voz sussurrar segredos, imensamente terna.
No Estado de Minas Gerais, forma, com
Wagner Tiso, o grupo vocal “Luar de Prata” e diverte-se na rádio a fazer de
“disc-jockey” ou de “crooner” em bailes populares, integrado nos “W’s Boys”.
Wagner ajuda-o a transitar do rock para o jazz. Da voz, diz Elis Regina que “se
Deus cantasse, com toda a certeza o faria usando a voz de Milton Nascimento”.
Eumir Deodato, percussionista de
jazz-rock, leva-o pela primeira vez, em 1968, aos Estados Unidos, para a
gravação do álbum “Courage”, com Hubert Laws e Herbie Hancock, dois “jazzmen”
conceituados. Hancock fica fascinado com a música do “negrão” cuja voz “parece
vir de um lugar misterioso”, envolvendo todos “com o calor do sentimento humano”.
Milton, por seu lado, não resiste a introduzir no seu trabalho o verniz das
grandes orquestrações, típico da “maneira de fazer” americana. Regressado a um
Brasil então prenhe de mudanças sociais e políticas, grava “Clube da Esquina”
(1972), prenunciando a obra-prima que o lançaria como embaixador da música
brasileira no mundo: o duplo álbum “Milagre dos Peixes”, editado em 1973, com a
colaboração do grupo “Som Imaginário”, do qual faziam parte, entre outros,
Wagner Tiso e Nivaldo Ornelas. Nele, Milton, “porta-voz de todos quantos não
têm possibilidade de se expressarem”, canta “os sonhos, as esperanças,
angústias e frustrações do povo, a sua coragem e a sua força”. O suficiente
para a censura lhe proibir as letras. Mais permissiva, a América das patacas
abre-lhe definitivamente as portas. “Native Dancer”, com o saxofonista Wayne
Shorter, junta num discurso jazzístico a luminosidade da voz à negritude do
sertão.
Acredita que “há um modo, ainda, de
dizer a verdade: com o violão”, doa a quem doer: a verdade da Natureza
destruída pelo homem, a verdade do negro exilado e humilhado, a verdade do
ódio, a verdade do amor”. “A arte é o caminho da liberdade” – afirma, com a convicção
lúcida da “Sentinela” que guarda os caminhos do mundo. Em “Missa dos
Quilombos”, álbum de 1980, gravado ao vivo na igreja de Nossa Senhora Mãe dos
Homens, em Minas Gerais, celebra a morte e a ressurreição do povo negro,
comparando-as à Paixão de Cristo.
O seu empenhamento político, ao lado
da oposição contra o autoritarismo vigente, está bem patente nas obras “Paixão
e Fé” (1985) e “Encontros e Despedidas” (1986) e na canção “Coração de
Estudante”, transformada em hino do “Movimento para a democracia”. Tempo de
luta, prosseguindo em “Barca dos Amantes” ao lado de outro resistente, o
português Sérgio Godinho.
“Yauraté” (1987) assinala o apelo
irresistível da selva amazónica e o abraçar de uma causa vital para o futuro do
planeta. Participação especial de Paul Simon que retribui, convidando Milton
para as festividades de “Rhythm of the Saints”. Finalmente, em 1989, “Txai” e a
viagem coletiva ao “coração da luz”, subida do rio Jurua até à nescente e à
música primordial dos índios Waipai, Kayapo e Surui. Reencontro com a pureza
edénica de quem “se expressa através de tudo o que faz e não sabe fingir” – “eu
cantava para eles e eles cantavam para mim. As crianças falavam com a lua e com
as estrelas e nós tínhamos de formular os nossos desejos”. O de Milton
Nascimento passa por devolver ao mundo a “humanidade perdida”.
Milton traz consigo ao Coliseu de
Lisboa: Ronaldo Silva (percussão), Robertinho Silva (bateria), Vanderlei Silva
(percussão), Túlio Mourão (teclados) e João Baptista (baixo).
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