PÚBLICO SEGUNDA-FEIRA, 3 JUNHO 1991 >> Cultura
Folk
Tejo
Som quase estragou a festa
Lisboa iniciou as suas festas juninas ao som da música
folk. O cartaz de sábado era aliciante: duas vozes femininas de chegar ao céu,
três escoceses dos copos e um gaiteiro de cortar o fôlego. Na luta contra o
som, péssimo, só June Tabor venceu e comoveu. Mas o público queria era dar ao
pé.
Música folk, tradicional, étnica, nos
últimos tempos, tem sido um fartote. Lisboa aderiu à onda, com o Tejo ao lado e
as eleições à porta. Coliseu dos Recreios. Cerca de meia casa, composta pelos
indefectíveis do género, mais os curiosos, mais aqueles que vão a todas. Os
primeiros saíram com um sabor a frustração. Os curiosos aguçaram ainda mais a
curiosidade. Os outros não devem ter percebido nada, até porque o som não
deixava.
Um grupo nacional de zés-pereiras,
gaiteiros e tocadores de bombo circulou pelas artérias junto ao recinto, antes
de subir ao palco para uma atuação, no mínimo, bombástica.
Maddy Prior, voz lendária da cena folk
britânica, estandarte dos Steeleye Span e atualmente mais apaixonada do que
nunca pela música antiga (no seio dos Carnival Band) e pelo marido, desiludiu,
sem que a culpa tivesse sido inteiramente sua. Entre dois amores, optou por
trazer o marido – Rick Kemp – e cantar umas melodias que seriam certamente
bonitas, se acaso fosse possível perceber alguma nota. Não há, de facto,
adjetivos que cheguem para desancar um som exageradamente amplificado,
empastelado, impróprio para um comício quanto mais para um concerto de música.
Salavaram-se os momentos em que Maddy Prior, sozinha, sentada à beira do palco,
ou acompanhada unicamente pelo piano e pelo contrabaixo, deixou perceber a voz
maravilhosa que realmente tem.
A emoção da cerveja
Das terras altas da Escócia, os
McCalmans, trio já veterano nestas andanças, chegaram de guitarras e latas de
cerveja em punho para pôr toda a gente aos pulos, com as suas harmonias vocais
emocionadas e toda a fluência que só o álcool é capaz de proporcionar. O homem
da mesa de mistura, experimentador nato, desta vez apostou tudo nos agudos
metálicos, testando a capacidade de resistência dos tímpanos às frequências
mais elevadas. Os escoceses acabaram por perceber – no “encore” da praxe
dispensaram a amplificação, cantando abraçados, eufóricos e voltando a dar um
empurrãozinho publicitário à tal marca de cerveja.
Depois, chegou o momento mais alto da
noite, graças à voz e postura sublimes de outra grande senhora da Folk, June
Tabor. Acompanhada apenas por dois violinistas, tornou claro que a verdade do
canto tradicional exige silêncio e contensão. Foi até ao fundo, contando e
cantando histórias trágicas de amor e ódio, de alegria e morte. Houve quem não
compreendesse e assobiasse, exigindo o que nessa altura soaria despropositado –
a dança e o delírio telúrico. June Tabor só no fim soltou as pontas à rede de
sortilégios – saltando e batendo palmas, como uma menina que por dentro
continua a ser – não sem que antes a sala escurecesse e calasse vergada a uma
arrebatadora interpretação de uma canção de Brecht. O próprio som, como por
artes mágicas, melhorou.
Música “a metro”
Davy Spillane, gaiteiro de
reconhecidos méritos, revelou-se mestre de duas coisas: das suas “uilleann
pipes” (que maneja com a agilidade de quem não deve fazer outra coisa) e na
arte de música “a metro”. O irlandês mistura tudo – os blues, o rock ‘n’ roll,
a country e a música de baile. A solo, mostrou-se realmente “virtuose”,
interpretando, entre outros, um tema dedicado a esse outro grande gaiteiro que
é Paddy Moloney, dos Chieftains. O pior foi o resto, as “desbundas” coletivas,
o tom piroso da guitarra, embevecida nos acordes de “samba pa ti” e se calhar
na lembrança de convívios que decerto deve ter havido também lá pela Irlanda.
Davy não quis saber de purismos e lançou-se a mil à hora, tocando as suas
“pipes” como um danado. Em frente ao palco, os mais entusiastas entregaram-se,
extasiados, aos prazeres da dança.
Quem não deve ter sentido prazer
nenhum foi aquele jovem espancado e atirado pela escada abaixo, já perto do
fim, por três “agentes da autoridade, apenas por ter pedido que o deixassem
entrar. Final triste para um acontecimento que se propõe dar um ar mais
saudável e civilizado à capital.
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