Sons
18 de Julho 1997
Cantora dos Madredeus e mestre da guitarra, lado a lado
18 de Julho 1997
Cantora dos Madredeus e mestre da guitarra, lado a lado
Salgueiro entre ciprestes
Uma pequena vila da Toscânia, na Itália, rendeu-se ao fado, à guitarra portuguesa e à voz de Teresa Salgueiro.
Foi em Montecastello de Pontedera, na Villa Malaspina, a convite de uma marquesa, que o trio Teresa Salgueiro, António Chainho e Fernando Alvim encheu a noite toscana de saudade.
O concerto, integrado na programação italiana do Festival Sete Sóis Sete Luas, teve lugar na noite do passado sábado, constituindo, sob todos os aspectos, um êxito. A experiência não era nova. Já antes a vocalista dos Madredeus cantara com o mestre da guitarra portuguesa, António Chainho. Mas esta foi uma ocasião especial. Um encontro com a noite, de nostalgias e alegria partilhadas.
António Chainho, acompanhado à viola por Fernando Alvim, fez de anfitrião. Teresa Salgueiro, enquanto voz convidada, fez figura de jóia da coroa, jogando-se muito do sucesso e da viabilidade (em termos de afluência de público) desta colaboração no facto de Teresa pertencer aos Madredeus, grupo que, sobretudo a partir da aceitação internacional obtida com a banda sonora de “Lisbon Story”, de Wim Wenders, no álbum “Ainda”, tem neste momento um cartel bastante forte em Itália, sendo este concerto, aliás, precedido por uma minidigressão de seis concertos do grupo, neste país.
A noite, enquadrada pelos ciprestes que acentuam a nobreza da paisagem toscana, convidava ao intimismo. O recinto, na ocasião o páteo de uma daquelas “villas” italianas que imaginamos dos filmes, transformado em auditório, encheu-se de italianos vindos não só das principais cidades mais próximas, como Florença e Pisa, como também de outras mais distantes, como Milão. Todos atraídos pela combinação de uma voz onde o fado baila disfarçado com a mestria das guitarras antigas, tangidas por quem sabe. A expectativa fora criada previamente, tendo o concerto sido anunciado com bastante antecedência, em diversas publicações italianas.
Chainho e Alvim jogaram declaradamente no virtuosismo, com a preocupação de prender a assistência desde o início. Sobretudo o primeiro, solou em constantes acelerações, descendo no braço da guitarra às tonalidades mais altas, passe o paradoxo, em exercícios de estilo que deixaram o público italiano boquiaberto. Com um disco gravado recentemente com a Orquestra Sinfónica de Londres, António Chainho tem, neste momento, “uma aposta”, como ele próprio nos confidenciou, durante a ceia oferecida pelos proprietários da Villa Malaspina a todos os convidados, após o concerto: “Fazer com que a guitarra portuguesa seja mais conhecida.” A publicidade, pelo que se viu, foi boa.
O primeiro encontro entre ele Chainho e Teresa Salgueiro tivera lugar na celebração dos 30 anos de carreira do guitarrista, com a presença dos Madredeus. Nessa ocasião, Chainho, José Peixoto, Pedro Ayres de Magalhães e Teresa Salgueiro improvisaram juntos. Em Itália, ficou assinalado o sexto encontro entre o guitarrista e a cantora. Só que a responsabilidade deste era maior.
Consumada a afirmação orgulhosa – e portentosa – da guitarra, aumentava a excitação entre os italianos, ansiosos por ouvirem a voz dos Madredeus neste seu novo contexto. Teresa surgiu, como habitualmente, de negro, pose recolhida, a voz aquecida entrando numa nota de lirismo, com “Cantiga de Amigo”, de Oulman e Mendinho. Estavam previstos cinco temas. Teresa Salgueiro cantou o dobro, incluindo dois “encores”. Ao todo, ouviram-se, além daquele, ainda os seguintes fados: “Nome de rua”, “Fado Malhoa”, “Rua do Capelão”, “Dá-me o braço anda daí”, uma série, cantada pela primeira vez por Teresa, constituída por “Solidão”, “Havemos de ir a Viana” e “Fadinho da tia Maria Benta”, mais “Maria Lisboa” e “Espelho quebrado”.
Nesta progressão, a voz foi ganhando força e conquistando o público. O fado, que Teresa Salgueiro aprendeu a amar e a cantar desde muito nova, ganhou nela uma luz menos velada, transformando-se o luto em claridade. Teresa não é fadista. Ou, pelo menos, não o é da mesma maneira a que estamos habituados. Chainho reconhece isso. “É como transportarmos uma canção e dar-lhe um cunho de fado”, disse, referindo-se a experiências semelhantes de outros cantores na área do fado. Ou será melhor chamar-lhe “neofado”? A própria Teresa Salgueiro admite que os Madredeus “podem ter uma influência do fado”. Ainda que, para ela, o mais importante, para lá de todas as formas e estilos, seja a “vivência”. O modo como se entrega. A alma com que se afirma.
O público adorou, não regateando aplausos ao trio. António Chainho conseguiu o pretendido, chamar a atenção para a sua música e para a música e musicalidade da guitarra portuguesa. Teresa Salgueiro, por seu lado, pôs em prática, uma vez mais, o que considera ser a sua “paixão”, só possível nos intervalos das digressões e do trabalho dos Madredeus, um grupo em plena fase de transição, cujo próximo álbum – “hélas” – será gravado em solo italiano, mais concretamente em Veneza, havendo a possibilidade de, pela primeira vez, ter lançamento mundial. As gravações estarão, em princípio, concluídas em 17 de Agosto. Depois, os Madredeus partirão para nova digressão, no México, onde nunca actuaram antes, nos Estados Unidos e Canadá.
No dia seguinte, na Villa Comunale de Pontedera, foi a vez de o cineasta Manoel de Oliveira, apresentar e comentar a sua última longa-metragem “Viagem ao Princípio do Mundo”. No debate realizado no final, entre interrogações do porquê de alguns fundos parecerem desfocados (“Não é uma deficiência técnica mas uma opção estética”, teve de explicar o realizador português...) e uma verdadeira sessão de hermenêutica, disparada por uma entusiasmada italiana, aluna de uma escola de cinema, houve o genuíno interesse do público e um Manoel de Oliveira em noite de interessantíssimas divagações filosóficas em torno do seu cinema.
Riccardo Tesi, toscano de gema, e a sua Banditaliana actuaram na segunda-feira numa minúscula aldeia das redondezas. Concerto inesquecível. No meio dos anciãos da aldeia, de crianças barulhentas e até da intrusão do ruído de alarme de automóvel de Ettore Bonafé (extraordinário vibrafonista!), estacionado mesmo ali, Riccardo Tesi e a sua banda deram uma lição de profissionalismo, mostrando que a arte de viver não está desligada da arte de tocar.
Quadros de uma disposição
O ambiente não podia ser mais poético. Sob o céu estrelado da Toscânia, em frente aos muros de uma típica “villa” italiana, o cenário parecia tirado de um filme dos irmãos Taviani. Moldura, humana e paisagística, a condizer. Uma aura de mistério no ar. Ciprestes acentuando as sombras. Pequenas velas dispostas em volta, iluminando os fantasmas que a música convocava. A Villa Malaspina, onde se realizou o concerto de António Chainho com Fernando Alvim e Teresa Salgueiro, é propriedade de um casal de nobres italianos. Soava mais fundo, a música, como que inebriada nos corredores do tempo.
Após o concerto, foi servida uma ceia no interior da velha habitação. Mudança de cenário. A marquesa, envergando uma “T-shirt” com marca de estilista célebre, com o nome de Placido Domingo nas costas, quis falar pessoalmente com os músicos. Instalou-se a comitiva. Palavras de ocasião. O cerimonial, de início, de quem quer atravessar a ponte, mantendo-se as distâncias. Perguntas da praxe. Qual o próximo disco, o fado, sempre o fado. De Fernando Alvim, a discrição em pessoa, nem uma palavra. Depois, o gelo a quebrar-se com um copo de tinto. Teresa Salgueiro e a marquesa à conversa. Mais animada. Os salões, amplos e quase sem mobília, a colorirem-se de quadros inexistentes. A Toscânia lança um feitiço. Três músicos portugueses, a música portuguesa, trespassaram com a sua tradição uma outra tradição. Ficaram os quadros. De um estado de espírito. Em verde e vermelho. Cores de duas bandeiras com as mesmas cores.
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