15/01/2011

"Vamos lá purificar o mundo" [Meira Asher]

Sons

2 de Julho 1999

Entrevista com Meira Asher

“Vamos lá purificar o mundo”

Com “Spears into Hooks”, editado no princípio deste ano, Meira Asher pretendeu “espelhar os traumas e a violência do mundo, para que as pessoas compreendam o que se passa”. Depois de um apocalíptico concerto no Porto, o PÚBLICO falou, por sua conta e risco, com esta israelita que gosta de provocar os fanáticos e para quem o torturado se transforma, inevitavelmente, no torturador. Purificação pelo dilúvio.

A intensidade do discurso de Meira Asher tem a mesma força e o mesmo carácter de desafio que estão presentes nos seus discos e, de forma ainda mais radical, como o Porto teve oportunidade de testemunhar, nos espectáculos ao vivo. A “world music” deixou de ser uma coisa inofensiva, quando a israelita entrou em cena.
PÚBLICO – No concerto do fim-de-semana passado no Porto, parte da assistência não conseguiu suportar a violência da sua música. Costuma acontecer isso com frequência?
MEIRA ASHER – Talvez não estivessem suficientemente preparados. Mas os que ficaram ouviram com atenção. Já me aconteceu tocar em recintos absolutamente vazios, em que as pessoas rejeitaram em absoluto a minha música. No Porto houve emoções desencontradas, de choque e excitação. Em todos os meus concertos há sempre gente que sai. Se isso não acontecesse é que ficaria preocupada.
P. – O que aconteceu entre “Dissected” e “Spears into Hooks”? Não há comparação possível entre estes dois trabalhos…
R. – “Dissected” representou o culminar de dez anos em que estive envolvida no estudo da música clássica do Norte da Índia e das percussões africanas. Usei processos de composição através dos quais procurei formas diferentes de expressão para a língua hebraica. “Spears into Hooks” é um álbum conceptual. Nunca me considerei integrada na música étnica. Não se trata de uma influência, mas de uma vivência. Foi isso que fiz quando estudei música indiana. Durante sete ou oito anos dediquei-me exclusivamente a cantar no estilo “dhrupad”.
P. – Ao contrário de “Dissected”, em que os elementos acústicos eram preponderantes, “Spears into Hooks” é um disco que, em termos formais, se pode conotar com a música electrónica industrial.
R. – Deixei Israel há dois anos para ir viver no Ocidente, onde me familiarizei, de forma natural, com a electrónica. Decidi explorar a problemática das relações entre a Palestina e Israel através deste meio, o que me permitiu atingir o nível de intensidade e de ruído que procurava.
P. – Por que razão gravou “Spears into Hooks” em Ljubljana, na Eslovénia, a cidade sede dos Laibach?
R. – Conheço e aprecio bastante os Laibach. Fizeram um trabalho importante, de grande discernimento político e social. Abriram as mentes das pessoas. São artistas completos. Escolhi esta cidade por outras razões, encontrei lá métodos de trabalho que me agradaram. Depois de um curto período em que vivi em Londres, regressei a Israel já com os textos do álbum prontos. Trabalhei nessa altura com um inglês, Jeremy Azies, músico e etnomusicologista, especialista na música funerária dos Camarões. Os temas “Tiring night” e “Weekend away break”, por exemplo, foram escritos em conjunto pelos dois. Londres não me inspirou. É uma cidade demasiado virada para a moda e para as últimas tendências. Já tinha alguns conhecimentos na Eslovénia e estabeleci os meus contactos, sobretudo através de Aldo, um dos músicos do grupo Borghesia, que acabou por funcionar, um pouco, como produtor executivo na Eslovénia. Encontrei na Eslovénia a energia certa para gravar. Além disso, é um lugar com raízes balcânicas, que são também, em particular, as minhas, uma vez que o meu pai é búlgaro e os meus avós maternos são russos, mais exactamente da Letónia.
P. – “Spears into Hooks” pode ser encarado como a “música do mundo” contemporâneo?
R. – A “world music” não pode ser aquilo que a indústria quer que ela seja. “World music” pode ser facilmente aquilo que faço, embora pareça não se adaptar ao termo. A escolha da minha música para a programação do festival do Porto foi muito inteligente, já que ela reflecte a realidade actual do Médio Oriente. Há quem se contente em fazer canções com base no verso e no refrão. Eu não. Se alguém espeta uma faca no estômago de outra pessoa, eu quero que se ouça o som das tripas a sangrar.
P. – Disse que duas das doenças que afectam o indivíduo neste final do século XX são a cobardia e a apatia. São os seus principais inimigos?
R. – Sim. Quando se passa sucessivamente por várias guerras, e por toda a espécie de violência, como acontece no Líbano, por exemplo, ao fim de 32 anos de ocupação, acaba por se desenvolver a apatia. E por crescer uma “pele de elefante”, como eu costumo dizer. Uma armadura de apatia que faz da pessoa um cobarde. Deixa-se de querer mostrar os ferimentos, de falar sobre o assunto. De encarar de frente o problema.
P. – Em que é que o mundo se está a tornar?
R. – Caminha para a globalização, sem dúvida, no sentido do conforto económico. Funciona sobre o princípio simples da acumulação de poder. Gira tudo em torno do poder e não se pode fazer nada contra isso. Faz parte da nossa natureza, acumular mais e mais poder até nos tornarmos o vencedor absoluto.
P. – “Spears into Hooks” reflecte experiências pessoais, sem dúvida, mas que também vão buscar material à memória colectiva…
R. – Sim, acredito que uma parte da História da Europa – de há 50 anos atrás – se transferiu para o Médio Oriente, para um pequeno local chamado Israel. Foi uma das consequências do Holocausto. Daí o paralelo que estabeleço entre o holocausto nazi e o holocausto palestiniano. Quem sofreu torturas e vagueia por aí cheio de traumas, provocados pelo Holocausto, pode tornar-se facilmente o torturador. Como uma criança maltratada pelos pais que, em adulta, se torna o pai que maltrata os filhos. É um desenvolvimento natural. Ou um contradesenvolvimento… “Spears into Hooks” espalha amor de uma maneira negativa. Pretende espelhar os traumas e a violência para que as pessoas compreendam o que se passa.
P. – No seu espectáculo, a frase “Birkenau, aqui e agora” repete-se de forma obsessiva, como um sinal de alarme.
R. – Sim, tudo continua, independentemente do nome do campo de concentração. Os princípios permanecem os mesmos.
P. – Tem alguma explicação para os horrores que aconteceram na II Guerra Mundial?
R. – Não se pode racionalizar. Foi uma espécie de… é difícil explicar por palavras… como se as coisas se juntassem todas num determinado sentido para dar origem a um acontecimento anormal. O mais importante foi o que aconteceu depois, os desenvolvimentos que deram origem às transformações da nação alemã e, por consequência, da Europa e do Médio Oriente.
P. – É uma pessoa religiosa?
R. – Não, de maneira nenhuma.
P. – Não acredita em nada?
R. – Acredito no poder que nos faz viver e agir. Acredito que existe uma energia que nos conduz. Acredito na intuição. E nas pessoas. O que tento dizer e partilhar com as pessoas é algo muito simples: “O que é que pode desenvolver-se a partir de uma realidade violenta?” e “Estamos, de facto, prontos, para trazer mais crianças a um mundo dominado pela violência?”. Somos suficientemente responsáveis? É justo?
P. – Um dos temas mais fortes de “Spears into Hooks” é “The flood”, o dilúvio. O Apocalipse está próximo?
R. – É a história clássica da Bíblia, um grande livro de poesia. A versão em inglês soa de forma completamente diferente do original em hebraico. Gosto de provocar os fanáticos. Em “The flood” – que, segundo a Cabala, se assemelha muito ao Holocausto, razão por que pus o tema sobre Birkenau logo a seguir –, escolhi aquela parte em que Deus diz a Noé: “’Ok, man’, prepara-te!” [Risos.] Vamos lá purificar o mundo um bocadinho.

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