26 de Novembro 1999
Edward Ka-Spel abre a porta de “The Blue Room”
Quarto com vista para a alma
Com “The Blue Room”, Edward Ka-Spel, vocalista dos Legendary Pink Dots, deu início a uma trilogia em torno da demanda da alma. A caminho de um estado de consciência mais elevado, com ou sem o recurso a cogumelos alucinogéneos e segundo a máxima de que “ninguém pode tocar nas nuvens se não trepar primeiro a montanha”.
Apocalíptico, explorador dos estados alterados da consciência, admirador incondicional de Peter Hammill e dos King Crimson, Edward Ka-Spel explicou ao PÚBLICO alguns dos caminhos que dão aceso ao “quarto azul”, átrio de entrada do seu templo pessoal.
PÚBLICO – “Sing while you may” é a frase que costuma acompanhar todas as edições, suas e dos Legendary Pink Dots. Até quando?
EDWARD KA-SPEL – Na verdade, não creio nem em princípios nem em fins, porque a única coisa que ninguém pode conceber é a não-existência. Mas é ela que faz da imortalidade uma realidade. Não, não creio que o mundo acabe a 31 de Dezembro… Há um mundo sem fim, assim foi e assim será sempre.
P. – Mas o Apocalipse é um tema recorrente na sua obra…
R. – O planeta está a experimentar um processo de aceleração que pode ser sentido por toda a gente que vive nele. Chame-lhe Apocalipse, se quiser. Uma aceleração que conduz à saturação. O mundo terá um aspecto inteiramente diferente daqui a dez anos.
P. – … Bem como as temáticas religiosas em geral, em álbuns como “The Maria Dimensions” ou numa faixa de “The Blue Room” como “Supper at J’s”…
R. – Acredito na predestinação. Numa mão que nos guia. E que todas as coisas acontecem porque têm de acontecer. Nos próximos tempos a raça humana passará para um estado de consciência mais elevado, mas, para usar uma analogia, “ninguém pode tocar nas nuvens, se não trepar primeiro a montanha”.
P. – A Internet, como aparece no novo álbum dos LPD, “Nemesis on Line”, parece ser outra das suas preocupações. Vê na Net a rede ideal de comunicação global ou um gigantesco curto-circuito?
R. – Acho que dependemos em demasia dos computadores, o que se pode tornar perigoso. Neste aspecto sou tão culpado como toda a gente. A comunicação global nunca foi tão perfeita como hoje, mas também um colapso, caso aconteça, não poderia ser mais catastrófico.
P. – Os Legendary Pink Dots (LPD) deveriam chamar-se antes Legendary Sink Dots (LSD)?
R. – Raramente tomo drogas hoje em dia, embora algumas substâncias alucinogéneas continuem a fascinar-me, especialmente os cogumelos. Ingerir cogumelos desta espécie é um assunto sério, foi graças a eles que aprendi a conhecer-me melhor.
P. – É, a par de Julian Cope, um dos verdadeiros psicadélicos dos anos 90. Não acha perigoso viajar nos anos 90 pelos planos astrais?
R. – É menos perigoso quando permanecemos ligados a nós mesmos.
P. – As cores da capa de “The Blue Room” são as mesmas de “In the Court of the Crimson King”, dos King Crimson. Mera coincidência?
R. – Bem, os King Crimson são a minha banda preferida…
P. – Já agora, tem algo a dizer sobre Peter Hammill? As vossas duas visões poéticas aproximam-se nalguns pontos…
R. – Peter Hammill é simplesmente um dos maiores! Ouvi os Van Der Graaf Generator quando era ainda muito novo e continuo a ouvi-los hoje. Nunca se desviou do seu caminho, algo que eu admiro muito. Além de que ele próprio é tão bom como os seus discos. Encontrei-me com ele uma vez: é uma pessoa fantástica.
P. – Que ideias procurou explorar em “The Blue Room” que não cabiam nos Legendary Pink Dots?
R. – Os discos a solo devem aventurar-se por territórios mais obscuros. “The Blue Room” é a primeira parte de uma trilogia da qual já terminei a segunda, cujo título será “The Red Terrors”. Serão três álbuns que sintetizam uma demanda da alma.
P. – Uma das características mais estranhas da sua música é o contraste entre a suavidade e a quase inocência da voz e as temáticas que canta – quase sempre inquietantes. Trata-se de uma estratégia deliberada para melhor penetração na mente?
R. – O mundo é um lugar multicolorido e multitexturado e eu nunca tive pretensões de ser perfeito…